A história de Kim Noble, uma artista plástica inglesa que carrega 20 personalidades diferentes em seu cérebro, mostra por que a desordem dissociativa de identidade, ou apenas DDI, confunde e fascina médicos e psicólogos há décadas
Juliana Tiraboschi, de Londres
Fotos: Nick Harries
É uma casa pequena, com a fachada igual às vizinhas. Estou em um subúrbio de Londres, em uma rua muito tranqüila e quieta. Lá moram duas pessoas, a artista plástica Kim Noble, 46 anos, e sua filha Aimee, de 11 anos.
Ou melhor, lá vivem 22 pessoas, se considerarmos todas as outras que moram na cabeça de Kim. Ela sofre de desordem dissociativa de identidade (DDI). O nome anteriormente dado a essa doença pela comunidade médica diz tudo: múltiplas personalidades.
Tudo em sua minuciosamente arrumada casa, do tapete à mesa, das estantes ao sofá, é preto e branco. O visual clean só é quebrado por almofadas cor-de-rosa jogadas no sofá. Ninguém diria que lá vive alguém que poderia ser considerada louca pelos "normais".
Em uma tarde amena de verão, Kim prepara um café e conta sua história. Seus problemas começaram quando ela tinha 14 anos e seu comportamento passou a ser estranho, agressivo e autodestrutivo. Erroneamente, ela foi diagnosticada com esquizofrenia, depressão, transtornos alimentares como bulimia e anorexia e outras desordens de personalidade.
Kim enfrentou anos difíceis, foi internada várias vezes em hospitais psiquiátricos e experimentou diversos medicamentos. "Quando fui diagnosticada com esquizofrenia, tomava antipsicóticos. Mas chegou um ponto em que eu só ficava dopada, era horrível. Éramos forçados a tomar os remédios", diz. Seu discurso é assim mesmo, misturando a primeira pessoa do singular e do plural. "Foi muito difícil, eu me perguntava se ia ficar internada pra sempre, se ninguém ia me ajudar", diz Kim, que chegou a sofrer mais de uma overdose das drogas prescritas para tratar seu caso.
Harmonia: para Aimee, filha de Kim, conviver com o distúrbio da mãe é natural |
Comportas abertas
Seu diagnóstico correto só foi feito há apenas 14 anos. Passou a fazer psicoterapia duas vezes por semana e abandonou os remédios. "Tudo começou a melhorar", afirma. Há quatro anos, uma assistente social sugeriu a Kim que começasse a pintar. Foi como se uma comporta tivesse sido aberta em seu cérebro. Ela passou a conhecer seus álteres - termo usado pelos especialistas para definir suas várias personalidades - pelo estilo artístico de cada um. Já identificou 20 deles.
Kim diz que nunca havia percebido seu distúrbio. Não imaginava que os apagões de memória que sofre durante três ou quatro horas todos os dias são sinal de que outra persona assumia o comando de seu corpo. Como gostava de beber uma taça de vinho todos os dias, começou a achar que o álcool a estava afetando.
Com a terapia, as observações da filha e a produção das telas, passou a aprender mais sobre "os outros". Quando, depois de um apagão, Kim vê uma pintura nova ou alterações em um quadro que já havia começado a pintar, é capaz de dizer quem esteve por lá. "Do contrário não sei", diz.
A DDI ainda é extremamente mal compreendida pela ciência. Especialistas afirmam, porém, que o distúrbio é geralmente desencadeado por um trauma recorrente ocorrido na infância, principalmente o abuso sexual. Por haver mais casos desse tipo de violência entre mulheres, elas são a grande maioria dos portadores de DDI.
DIZEM QUE SOU LOUCO
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TRANSTORNO OBSESSIVO-COMPULSIVO >>>Caracteriza-se pela existência de idéias perturbantes em relação a contaminação, perda ou agressividade. O paciente sente-se obrigado a realizar rituais ou atos repetitivos, como limpar-se constantemente ou verificar as trancas das portas. Também ocorrem rituais mentais, como fazer cálculos ou repetir determinada frase. Geralmente o paciente não sofre de dissociação da realidade, ou seja, tem consciência de que seus atos e preocupações são exagerados. O distúrbio afeta 2,3 % dos adultos, e dois terços deles sofrem de depressão em algum momento da vida.
TRANSTORNO BIPOLAR >>> Conhecido anteriormente como doença (ou transtorno) maníaco-depressiva, é caracterizado como uma alternação entre períodos de depressão com outros de mania. Na depressão a pessoa sente tristeza intensa, mas persistente e desproporcional em relação à gravidade dos eventos. Também pode sofrer alterações de apetite e de sono. Estima-se que cerca de 10% das pessoas que consultam um médico pensando que têm um problema físico sofrem de depressão. Já nos períodos de mania, o bipolar sente euforia, podendo tornar-se irritável ou hostil. Distrai-se facilmente e pode ter a falsa convicção de riqueza e poder. Também pode achar que está sendo perseguido ou sofrer alucinações. Acredita-se que a perturbação, que atinge cerca de 2% da população, possa ser hereditária.
SÍNDROME DO PÂNICO >>> O pânico se define por uma ansiedade aguda e intensa acompanhada de sintomas fisiológicos. Pode ocorrer como resposta a uma situação específica. Porém, quando não é esse o caso, é caracterizado como patológico. Quem tem essa síndrome costuma sofrer ataques que incluem dificuldade respiratória, vertigens, aumento do ritmo cardíaco, transpiração excessiva, falta de ar e dor no peito. É por isso que o paciente, antes de ser diagnosticado, geralmente recorre a médicos de especialidades diversas. Ocorre em menos de 1% da população e, apesar de não ser perigoso do ponto de vista da saúde, pode ocasionar sérios danos sociais e psicológicos, já que o paciente tende a evitar lugares onde os ataques costumam acontecer e, em casos mais graves, enclausurar-se em sua casa.
Produção em série: quadro de autoria de Ken, personalidade masculina de Kim que começou a pintar recentemente |
Kim não fala muito de seus tempos de criança, mas, sobre a causa de seu trauma, é enfática: "Não lembro de nada". Sobre a família, limita-se a dizer que a mãe já morreu e que tem pouco contato com o pai. Sabe quem é o genitor da filha, mas diz que ele não assumiu a paternidade.
O entendimento sobre a sua condição ajudou Kim a aprender a lidar com as dificuldades que ela acarreta. Isso influencia todos ao redor. "Os vizinhos acham que eu sou maluca, mas são muito compreensivos", diz. Também elogia o apoio encontrado nos professores da filha e nos amigos. Aimee lida com o problema com a naturalidade típica das crianças. Ao ser perguntada sobre Bonnie, um dos álteres com quem se dá muito bem, responde que está com saudades porque faz tempo que ela não aparece.
Às vezes algum dos álteres causa incômodos. Dentro de Kim há Judy, uma típica adolescente rebelde de 15 anos. A garota não acredita que ela tenha uma doença e pensa que Kim é outra pessoa. Sempre que aparece, reclama a Aimee que sua mãe é negligente por deixar a garota sob seus cuidados com tanta freqüência.
Entre elas não há comunicação direta, mas Kim consegue transmitir mensagens por meio de bilhetes e recados enviados pela filha e pela terapeuta. Alguns álteres possuem e-mail próprio e se comunicam de maneira independente com a médica. Dentre eles, apenas Bonnie aceita que sofre de um distúrbio. "Porém nenhum reporta experienciar as outras personalidades", diz John Morton, pesquisador do Instituto de Neurociências Cognitivas da Universidade College de Londres e um dos médicos que diagnosticaram Kim. Mas Morton já observou essa co-existência em outros pacientes. "É um mistério, mas acredito que eles estão habituados, como prisioneiros se acostumam a viver entre estranhos, a uma situação que para nós parece intolerável", afirma.
Com exceção desses conflitos internos, Kim contorna com desenvoltura os contratempos cotidianos. Quando encontra alguém que conhece uma de suas personalidades, mas que ela não reconhece, faz piada e posa de distraída. Outro truque para evitar aborrecimentos foi aposentar suas bolsas. Já perdeu pertences enquanto estava na rua e vivenciou uma mudança de persona. "Uma delas levou meu computador para o conserto, mas eu não sei onde é a loja para ir buscá-lo. Pelo menos nunca perdi minha filha", diz, bem-humorada.
Rebeldia: Kim segura tela de Judy, seu álter adolescente que não aceita a doença |
Mãe e filha juntas
Sua postura no passado era diferente. Logo que a filha nasceu, uma assistente social venceu uma ação para retirar a guarda de Aimee, mesmo com o parecer positivo dos médicos sobre a capacidade mental de Kim. A artista plástica conseguiu convencer o juiz de que estava apta a ser mãe depois de cinco meses de processo. Desde então, a vida segue tranqüila. Kim tira seu sustento de uma pensão do governo e complementa a renda com a venda de seus quadros. Não pretende tentar se curar.
Outros portadores do distúrbio aprenderam a lidar com o problema de maneira distinta. Um deles, a norte-americana Karen O'Hill, conseguiu livrar-se do distúrbio. Ela sofreu abuso sexual durante anos na infância, praticados por seu pai, seu avô e homens da vizinhança. Também sofria apagões, que se transformaram em amnésia durante outro episódio traumático: um parto realizado sem anestesia. "O abuso recorrente faz a personalidade se dividir como forma de lidar com a situação terrível", diz Richard Baer, médico que tratou Karen e contou sua história no livro "Switching Time" (algo como Trocando o Tempo, inédito no Brasil).
Baer levou nove anos para identificar a DDI. A demora se deveu à raridade do distúrbio e ao fato de a literatura médica sobre ele ser pouco confiável. "Em muitos casos, os pacientes foram induzidos por seus terapeutas a acharem que tinham diferentes personalidades", afirma Baer. Por isso, muitos cientistas acreditam que a DDI não existe. "Há médicos e psicólogos que acreditam que o distúrbio não é genuíno - não passaria de fingimento de alguém com uma memória muito boa", diz John Morton. Outros, afirma, crêem que a DDI é na verdade um estado semelhante ao hipnótico, no qual as pessoas se comportam da maneira como acham que deveriam se comportar.
As personalidades de Karen, contudo, pareciam saber que eram facetas. Baer teve essa prova quando recebeu uma carta, postada do endereço de Karen, com caligrafia de criança. Ela dizia: "Meu nome é Claire, tenho sete anos e eu vivo dentro de Karen. Não quero morrer. Você pode me ajudar a amarrar meus sapatos?". Outros "eus" da paciente também enviaram cartas.
O médico diz que já desconfiava do caso de DDI, mas admite que não tinha experiência com o assunto. Também afirma que era perigoso sugerir o diagnóstico a Karen, pois ela poderia ser induzida a inventar as personalidades, caso não sofresse da doença. Mas hoje ele não tem dúvidas. "Cada álter tinha maneirismos, caligrafia, jeito de sentar e tom de voz próprios, que se mantiveram iguais por anos. Nem uma ótima atriz conseguiria fingir dessa maneira", diz.
A solução para o tratamento de Karen partiu dela mesma. Ou melhor, de Holden, um álter masculino, mais velho e sábio. Karen via sua mente como uma casa, na qual cada quarto pertencia a uma persona. Holden escreveu as instruções: "Sob hipnose, peça a uma das personalidades para sair da casa e fundir-se ao corpo de Karen". Por meio dessa visualização - com um intervalo de anos até trabalhar todos os álteres -, Baer conseguiu unificá-los.
Por falar em Holden, é difícil entender que uma personalidade masculina ou infantil não perceba que é parte de um corpo de uma mulher adulta. Para Baer, o paciente sente-se estranho, mas aprende a lidar com a situação. "É como um transexual, um homem que se percebe como mulher e sente que nasceu no corpo errado". Já para Morton, o álter tem uma percepção alterada. "Uma personalidade masculina confrontada com a evidência da feminilidade provavelmente vai voltar para o estado anterior. Outra paciente que conheci parecia realmente enxergar seu cabelo como se fosse curto em vez de longo, como era na verdade", diz.
Seja lá como a cabeça delas funcione, pessoas como Kim e Karen merecem a chance de viverem suas vidas em liberdade e longe dos estereótipos de agressividade e deficiência geralmente associado aos loucos (veja quadro "As faces da loucura"). Afinal, se depender da harmonia e da capacidade de aceitação dos limites com as quais Kim Noble leva sua vida, ela pode ser considerada tão normal quanto você.
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