sexta-feira, 21 de março de 2008

Radicado nos EUA, o cientista Miguel Nicolelis quer criar 11 centros de excelência no Brasil

 
O desafio é espalhar ciência por todo o Brasil

Ruth Helena Bellinghini escreve para 'O Estado de SP':

Muita gente jura que mais dia menos dia o neurocientista Miguel Angelo Nicolelis vai levar o Nobel. Péssima notícia para a torcida do Corinthians, porque, muito provavelmente, esse palmeirense 'doente' vai dar um jeito de mencionar o time no discurso de agradecimento.

'O coração alviverde não agüentaria deixar de mencionar as origens. Mas é difícil demais para um 'cucaracha' chegar lá', diz, modesto, o pesquisador de 43 anos, professor titular de Neurobiologia e Engenharia Biomédica, e co-diretor do Centro de Neuroengenharia da Duke University, Carolina do Norte.

Nicolelis é notícia já há alguns anos. Ele e sua equipe desenvolveram um sistema que converte impulsos cerebrais em comandos matemáticos que podem ser interpretados por computador. No ano passado, duas macacas reso, com implantes cerebrais conectados a um computador, aprenderam a mover um braço robótico.

'A macaquinha, sem se mexer, aprende a usar só o cérebro para controlar o robô e o cérebro dela se modifica para incorporar o robô como se fosse parte de seu corpo', conta. O próximo passo, que pode ser dado em breve, é a autorização para que sua equipe realize a experiência com humanos.

As implicações são enormes. Dentro de 10 ou 15 anos, por exemplo, o sistema poderá ser usado por pessoas com paralisia para acionar braços robóticos ou mesmo uma cadeira de rodas. Mais que isso, o trabalho comprova que a plasticidade do cérebro vai muito além do que se imaginava.

O cérebro se adapta para usar determinadas ferramentas, de tal forma que elas se tornam uma extensão de nossos corpos.

Adaptação - 'Você compra um carro novinho e, por algum tempo, não se sente à vontade ao volante, mas após alguns dias a plasticidade cerebral faz com que ele pareça parte de você', compara o pesquisador. Vale o mesmo raciocínio para a armadura do cavaleiro medieval, para o pincel do pintor, para a bola nos pés do jogador de futebol. 'Por causa dessas pesquisas, meu laboratório cresceu muito - cresceu não, explodiu! - nos últimos cinco anos', diz.

Reconhecido internacionalmente, era de esperar que esse paulistano do Bexiga, criado à sombra da Igreja de Nossa Senhora Achiropita, se contentasse com a vida de pesquisador à frente de um laboratório de US$ 30 milhões.

Longe disso. Nicolelis tem na ponta da língua projetos para a criação de 11 institutos de pesquisa de ponta no Brasil - começando pelo lançado no início do mês, o de Neurociências, em Natal, no Rio Grande do Norte.

E ele não é do tipo que fica só nas palavras. Organizou o congresso internacional da área - 'Até vendi camisetas e virei motorista, buscando e levando gente para o aeroporto' - e enfrentou nos últimos dias uma maratona pelos gabinetes de Brasília.

Conversou com os ministros da C&T, Eduardo Campos, e Integração Nacional, Ciro Gomes; tomou café da manhã com a bancada nordestina do Congresso e, claro, conversou com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, fã declarado de sua proposta de criar centros de excelência no Norte e no Nordeste.

Por causa da indicação de Nicolelis, Lula vai receber o título de doutor honoris causa da Duke University ainda este ano.

Pedestal - 'A gente, em SP, tem diante dos olhos o resultado do investimento em ciência. Basta andar pelo interior e ver aqueles canaviais e ver a Embraer, fruto do Instituto de Tecnologia Aeronáutica (ITA).

Mas no Norte e no Nordeste não é assim, ciência é uma coisa distante da população e isso tem de mudar', diz. 'Não adianta sentar no pedestal e dizer que sou neurocientista, que trabalho com o cérebro.

Precisa explicar para a sociedade por que esse trabalho é fundamental, por que vale a pena investir o dinheiro do contribuinte nisso.'

Com o instituto - ou melhor, os institutos -, Nicolelis pretende ficar com um pé aqui e outro nos EUA. 'Bom, vou precisar de um avião, né? Eu não vou tocar o instituto, só vou fazer. É como o general Shermann dizia: If nominated, I'm not going to run. If elected, I'm not going to serve' (Se for indicado, não concorro. Se for eleito, não tomo posse)', compara.

'Ponho a coisa para funcionar, depois começo a batalhar pelo próximo, que pode ser de biologia marinha, doenças tropicais, de fontes alternativas de energia, farmacologia, botânica, pode ser em Teresina, em Macapá, em Rio Branco', afirma.

E dinheiro para tudo isso? O modelo é do Instituto de Neurociências de Natal, que vai funcionar em rede com os demais centros de pesquisa do país e do exterior. O terreno, em Macaíba, foi doado pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

O governo do Estado se encarrega da infra-estrutura - estrada, água, luz. O federal entra com os recursos para construção. 'O resto vem de fora', promete Nicolelis.

É coisa rara por aqui, mas nos EUA fund raising - captação de recursos - faz parte do dia-a-dia de pesquisador. Não se trata apenas de pedir financiamento, mas ir atrás de fundações, de instituições e até mesmo de milionários dispostos a desembolsar alguns milhões para financiar pesquisas e que batizam e sustentam laboratórios, bibliotecas e grandes centros de estudo.

Como o Instituto de Neurociências tem um braço social - um centro de saúde mental e uma escola, que vai utilizar novos recursos educacionais, para atender crianças e jovens da área até os 17 anos -, espera que brasileiros com recursos se sensibilizem com a proposta.

São 16 anos nos EUA, mas Nicolelis não se acostuma com o frio, com a falta de futebol, com a comida. 'É bom vir de fora, porque a gente não vê esse dia-a-dia difícil, o massacre contínuo da nossa paciência, com violência, com notícias ruins. A gente pode trazer o que aprendeu por lá, mas traz também a saudade, o entusiasmo, essa paixão para e pelo Brasil', diz.

Saudades da família, de bauru, Sonho de Valsa, queijo de Minas com goiabada, guaraná, Diamante Negro e pão de queijo, a lista que chama de kit básico do exilado voluntário. E esfiha, claro.

'Quando eu estudava no Bandeirantes, no Paraíso, minha mãe me dava dinheiro contado para o lanche, um refrigerante e um sanduíche de esfiha (pão sírio com uma ou duas esfihas abertas dentro) da Jaber. Quando vou a SP, é minha primeira parada', conta rindo.

Computação - Do Bandeirantes, Miguel Nicolelis foi para a Faculdade de Medicina da USP, mas demorou para o cérebro se tornar o centro de suas atenções.

'Primeiro eu me interessei por computação e medicina e, mais tarde, com meu amigo Koichi Sameshima criamos a primeira disciplina de informática médica da América Latina, na USP', lembra.

Nicolelis passou a fazer pesquisa no 3.º ano da faculdade e o cérebro entrou na sua vida lá pelo 5.º. Fez doutorado em fisiologia no Instituto de Ciências Biológicas da USP, virou professor da Medicina e, em 1988, foi fazer pós-doutorado na Filadélfia. Não voltou mais.

'Lá tinha um sujeito, o John Chaplin, que teve a mesma idéia que eu, registrar a atividade de centenas de células neurais ao mesmo tempo em animais que faziam coisas interessantes, como ratos, e o movimento de suas vibrissas (bigodes), que funcionam como dedos e servem para estudar a percepção tátil', explica. A técnica deu certo e daí veio o convite para a Duke University, em 1994.

Dinâmica - Chaplin e Nicolelis ajudaram a mudar o enfoque da neurofisiologia. 'Em vez de olhar uma célula de cada vez, analisamos grandes grupos que nos permitem chegar mais perto da dinâmica de funcionamento dessa estrutura em termos operacionais, o como funciona.'

E, se o assunto é cérebro, Nicolelis realmente se empolga. 'Me fascina o fato de que, talvez mais que o código genético, o cérebro nos diz o que cada um de nós realmente é, tanto o que temos em comum, como nossas diferenças. Esses circuitos e sua dinâmica explicam por que escrevemos, por que lembramos das coisas, o que sentimos, as tristezas, os nossos medos, nossos amores. Tudo isso está na atividade dos diferentes circuitos cerebrais.'

A redundância desse sistema é outro aspecto fascinante: o cérebro tem células para assumir o papel de outras células. 'A gente vai perdendo neurônios desde os 18 anos e se cada um tivesse uma função única, nessa idade começaríamos a ter muitos problemas', afirma.

Na verdade, as mensagens são amplamente distribuídas no cérebro e cada célula tem potencial para exercer várias funções. 'Em computação isso se chama multiprocessamento. É uma plasticidade dentro de certos limites, que pode ocorrer em várias regiões do sistema ao mesmo tempo. É uma coisa muito bonita', diz o pesquisador, que está terminando de escrever um livro de ficção e também é pintor autodidata.

Desafios - Natal, diz ele, pode ser o ponto de partida para responder muitas perguntas. 'Queremos entender o que é consciência, por que Alzheimer é o que é, por que Parkinson é assim. Nenhum laboratório do mundo, sozinho, vai conseguir, porque essas respostas exigem variedade de idéias.'

Nicolelis diz que seu projeto é uma bandeira, 'não daquelas de matar índio e roubar ouro, mas uma bandeira do bem'. Já tem até um bordão para seu projeto, 'precisamos emular Brasília', que considera o grande épico brasileiro. 'Precisamos de Brasílias científicas', afirma.

Casado, pai de três filhos - de 16, 13 e 10 anos -, o pesquisador não esconde o orgulho do mais velho, Pedro Ivo, que quer voltar para o Brasil. É ótimo aluno, tem futuro garantido lá, vai ser cortejado por todas as Universidades americanas, conta o pai-coruja.

'Ele quer vir sonhar aqui, porque lá o sonho acabou. A fronteira é aqui, os desafios estão aqui. Este é um país por construir, tudo está por fazer. Que desafio pode ser maior?'

Palmeirense fanático, Nicolelis vê todos os jogos do clube na TV a cabo, num ritual supersticioso

Torcedor que é torcedor literalmente veste a camisa. Miguel Nicolelis não só usou a da Seleção Brasileira para fazer sua palestra no Congresso Internacional de Neurociência, em Natal, como desfilou com shorts do Palmeiras.

Não satisfeito, ilustra sua conferência com uma foto do gol de Ronaldinho, na final do penta, no Japão, em 2002. E, para dar exemplos de como o cérebro se adapta para usar ferramentas como se fossem extensões do corpo humano, mais futebol.

'É como dizia o Garrincha, tem de dormir com a bola. É isso que acontece com gênios como Ademir da Guia, Pelé, Ronaldinho. Para o cérebro deles, a bola é uma extensão da representação do pé. O cérebro aprendeu qual a dinâmica daquela bola', compara.

'Os gringos não fazem isso porque só jogam em treino, mas a gente vive com a bola desde pequeno e a gente sabe.' Claro, não é só cérebro de brasileiro que funciona assim. Nos EUA, o exemplo é o taco de beisebol, que funciona como extensão da mão do jogador.

'Quando eles rebatem a bola, dizem que sentem se a bola vai vir redonda ou quadrada, que sentem a vibração na ponta do bastão.'

O grande choque na vida de Nicolelis foi a mudança para os EUA - que era para ser por pouco tempo -, a distância daquela 'grande instituição que são os avós', o frio, mas, sobretudo, a falta de futebol.

'Sei tudo da história do Palmeiras, da fundação até 1989, daí tem um buraco negro de quatro anos, porque ainda não havia Internet e, depois de algumas semanas, minha mãe se cansou de mandar os jornais com notícias do Palmeiras para mim', conta.

A página do seu laboratório na Duke University também escancara a paixão pelo país do futebol. Bandeirinha brasileira, lista de músicas - que inclui Garota de Ipanema, Corcovado e Eu e Você - e ali do lado, soberana, a bola.

E muitas histórias para contar. Como a do Japão e do quimono verde-e-branco.

'Eu estava em Tóquio, no meio de Ginza, com todos aqueles luminosos tipo Blade Runner, quando me lembrei de que tinha jogo do Palmeiras. Procurei um restaurante brasileiro e, quando estava chegando lá, saindo do metrô, vi uma mulher vendendo quimonos verde-e-brancos. Pensei: 'é um sinal' e comprei um', recorda.

Devidamente paramentado, entrou no restaurante e viu o jogo, que o time ganhou. Resultado: 'Só assisto a jogo do Palmeiras com o quimono verde-e-branco, lindo, com a faixa verde-esmeralda.'

A salvação da lavoura do torcedor exilado veio há quatro anos, quando a Globo Internacional entrou para o pacote da americana DishNetwork, um sinal experimental só para Nova York.

'A atendente me explicou que não tinha nada para baixo de Nova York e eu vivo na Carolina do Norte. Insisti, disse que queria para amanhã porque tinha jogo do Palmeiras. E a moça: 'o quê???', sem entender', diz. Explicação daqui, um jeitinho dali e Nicolelis foi o primeiro assinante do serviço abaixo de Nova York.

'Era Palmeiras e Vasco na final do Rio-SP e nós ganhamos por 4 a 0 no Morumbi. Trouxe a vizinhança inteira para ver e ninguém entendeu nada, mas, com o tempo, eles aprendem.'
(O Estado de SP, 21/3)