sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Freud não explica (quase) nada

Reinaldo José Lopes

É irônico que um especialista em demolir ídolos, um sujeito que esmigalhava idéias pré-concebidas lambendo os beiços, feito gourmet, tenha ele próprio virado um monstro sagrado. Refiro-me, claro, a Sigmund Freud, o pai da psicanálise. O problema com a canonização de Freud é simples. Assim como não dá para negar a importância do psiquiatra vienense na história das idéias do Ocidente (e, por favor, leia “história” como se a palavra estivesse escrita com neon e letras garrafais), também é inegável que o grosso do que ele propunha como explicação da mente humana é... bem, porcaria. Pronto, falei.

Também é ruim o fato de muita gente ter esquecido o Freud em começo de carreira, que desejava achar bases biológicas, neurológicas e químicas claras para os problemas mentais e dizia aguardar com ansiedade explicações “testáveis” -- passíveis de verificação por qualquer um em laboratório -- e físicas para esses fenômenos. Em vez disso, as pessoas endeusaram complexos de castração e de Édipo, id, ego e superego, de forma cada vez mais dogmática, até que boa parte da psicanálise virou exibicionismo literário (não é à toa que o último reduto freudiano são os departamentos de literatura das universidades). Mas, se Freud não explica quase nada, Darwin explica.

É o objetivo deste escriba mostrar, nos seguintes parágrafos, qual o grande acerto de Freud (sim, ele o teve, e foi importantíssimo) e, principalmente, contar como a combinação de psicologia evolutiva e neurociência reforma um bocado, e muitas vezes pode demolir, as idéias freudianas sobre sexualidade, sonhos e inconsciente. É um daqueles casos clássicos em que nem a hipótese mais elegante resiste a um aglomerado de fatozinhos desagradáveis. Vamos lá?

Inconsciente, inconsciente, inconsciente
Ao barbudo o que é do barbudo: Freud acertou em cheio ao insistir na idéia de que a imensa maioria dos nossos processos mentais se dá em nível inconsciente. Em certo sentido, isso vale até pra ações conscientes. Sabe-se, entre outras coisas, que os impulsos neuronais ligados à tomada de uma decisão pelo cérebro podem ser detectados ANTES da consciência dessa decisão (o que, para alguns, coloca em xeque até a noção de livre-arbítrio, mas essa é uma outra história). Sim, o inconsciente é o senhor da vida mental – coisa, aliás, que outros pensadores contemporâneos de Freud também diziam; ele não inventou a idéia.

O xis da questão é o porquê disso, e é justo em seu maior triunfo que o edifício freudiano começa a esboroar. O grosso do nosso funcionamento cerebral não é inconsciente porque escondemos de nós mesmos o lado negro de nosso ser, como argumentava Freud: é inconsciente porque daria trabalho demais e seria perigoso demais se não fosse.

Deixemos a coisa um pouco mais clara. Todos sabemos como é desconfortável dirigir um carro ou andar de bicicleta pela primeira vez, porque cada ação precisa ser executada de forma deliberada e consciente: pensar para dirigir só atrapalha. Uma vez que os mecanismos de guiar são internalizados, passando para a nossa memória implícita (diferente da explícita, aquela que a gente usa para guardar um número de telefone), tudo fica mais fácil – e mais seguro para motorista e passageiros.

O mesmo vale para uma série de funções do sistema nervoso, desde as mais básicas, que mantêm funcionando nossa respiração, até as reações emocionais mais diversas ou mesmo os julgamentos morais, que parecem ter uma base emocional muito forte, passando por reconhecimento de rostos e palavras, decisões sobre quem é ou não é atraente etc. É muito difícil, se não impossível, encontrar uma base racional consciente para todas essas coisas – em parte porque muitas delas são importantes demais para ser deixadas à mercê de um raciocínio lerdo. Saber distinguir entre um predador e um parceiro em potencial é um caso de vida ou morte – eis porque o controle é alegremente transferido ao inconsciente. “De pensar morreu um burro”, dizem por aí – aliás, morreu sem deixar descendentes, o que explica, em parte, porque a seleção natural favorece as espécies que não pensam demais para tomar decisões de vida e morte.

E é claro que, numa perspectiva evolutiva mais ampla, o próprio processamento mental de alto nível que nós chamamos de “consciência” é uma invenção relativamente recente, talvez privilégio de poucos mamíferos altamente curiosos e sociais, como grandes macacos, cetáceos e elefantes. O próprio peso da história do nosso sistema nervoso tende a “arrastar” grande número de funções para debaixo das asas do inconsciente.

A interpretação dos sonhos
A coisa fica ainda mais feia para o lado de Freud quando se leva em conta outra de suas idéias cruciais – a de que o conteúdo dos sonhos é uma forma de realização de desejos ocultos, que ocorre num momento de “guarda baixa” do superego (o conjunto de controles sociais e morais que faz as pessoas se comportarem de modo “aceitável”) diante do id (nosso lado instintivo e primitivo). Freud dizia, entre outras coisas, que sonhos no qual você voa são, na verdade, sonhos sobre sexo. (Como perguntou um personagem da série de quadrinhos “Sandman”: “E sonhos sobre sexo querem dizer o quê, então?”.)

O guru austríaco talvez ficasse meio cabreiro ao saber que os animais, essas criaturas proverbialmente sem superego, também sonham adoidado. Os mesmos padrões de atividade cerebral e de REM (movimento rápido dos olhos, na sigla em inglês) que caracterizam o sonhar humano também estão presentes em todas as espécies de mamíferos já estudadas, e até em aves. Os neurobiólogos ainda estão tentando entender em detalhes o que exatamente acontece durante os sonhos, mas há boas indicações de a coisa não tenha nada a ver com desejos reprimidos e tudo a ver com... seu cérebro desfragmentando.

Para quem não conhece a palavra, desfragmentar é o que o seu computador faz quando coloca os arquivos em sua memória numa ordem mais otimizada. Da mesma maneira, os sonhos parecem ser um subproduto aleatório do processo de consolidação e armazenamento das memórias que obtivemos durante o dia. Com isso, é inevitável que alguns aspectos da vida diária – inclusive as coisas pelas quais somos obcecados – acabem parando nos sonhos, mas procurar sentidos ocultos neles provavelmente é tanta perda de tempo quanto querer achar uma mensagem sobre o Apocalipse na página de teste da sua impressora multifuncional. Realidade 2, Freud 0.

Complexo de quê mesmo?
Nosso último caso de estudo, e talvez o mais complexo e interessante, tem a ver com as populares idéias de Freud sobre o desejo sexual infantil pelos pais (chamado de complexo de Édipo para os meninos e de complexo de Electra para as meninas) e os estágios de desenvolvimento na infância. Estudos em diversas culturas e regiões do mundo mostram que, se tivesse se permitido ser um pouco mais sofisticado e menos fissurado em mitologia grega, Freud teria acertado em cheio. Nenhuma pessoa normal, em nenhuma fase da vida, tem atração sexual pelos pais: nós só usamos nossos genitores como um modelo geral do que é atraente em outras pessoas.

Poucas coisas fazem mais sentido biológico do que a aversão quase universal ao incesto; até os grandes macacos evitam suas parentas mais próximas na hora de se acasalar. (Ao contrário do que dizia o psicanalista, que formulou a tese de que a “horda primordial” humana era dominada por um paizão incestuoso. Viagem pura.) Tampouco há qualquer registro de desejo sexual real de crianças humanas por seus pais. Afinal de contas, acasalar-se com parentes tão próximos, que compartilham conosco 50% dos nossos genes, equivale a concentrar grande quantidade de material genético nocivo nos descendentes e ter filhos com problemas sérios de saúde, se não inviáveis.

O fenômeno é tão importante que vale até para pais e filhos (ou irmãos e irmãs) adotivos, ou mesmo para crianças criadas juntas de forma coletiva em determinadas organizações sociais. No entanto, e aí é que está o pulo-do-gato, é estatisticamente muito provável que as pessoas se sintam atraídas por pessoas fracamente parecidas com seus pais e consigo mesmas.

A semelhança, embora pequena, é significativa, e inclui até detalhes que nos soariam absolutamente irrelevantes (circunferência do dedo anular, por exemplo – é sério!). É fácil de descobrir essa correlação analisando grandes grupos de casais. O que parece estar em jogo aí não é um desejo de consumar a sua tara de Édipo impenitente, mas sim a necessidade de equilibrar diferença e semelhança – é bom ter como parceiro alguém que não seja seu clone, mas que ao mesmo tempo mantenha algum grau de compatibilidade genética com você.

Princípio da realidade
O veredicto final, depois desses exemplos, chega a ser óbvio, mas talvez muita gente ainda precise ouvi-lo. Esquecemos com freqüência que, apesar de todo o seu brilhantismo literário, Freud realizou suas “descobertas” sobre a psiquê humana com técnicas questionáveis e pouca ou nenhuma confirmação experimental. Psicanálise funciona? Sim, mas placebo também. Nenhum edifício teórico, por mais sedutor que seja, pode ficar de pé diante do que os dados da natureza mostram.

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