segunda-feira, 27 de agosto de 2007

A destreza da mente: quando a ciência encontra a mágica

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27/08/2007

George Johnson

O motivo para ele ter me escolhido na platéia, insistiu Apollo Robbins, era o fato de parecer bastante envolvido, acenando com a cabeça e fazendo contato com os olhos enquanto ele e outros mágicos explicavam os truques do ofício. Eu acreditei nele quando me disse posteriormente, durante um jantar no Venetian, que não tinha percebido o crachá me identificando como escritor de ciência. Mas até aí todos acreditam no Apollo - enquanto ele remove habilmente sua carteira e
chaves do carro e solta seu relógio.

Era uma noite de domingo na Las Vegas Strip, onde há pouco tempo a Associação para o Estudo Científico da Consciência realizou seu encontro anual no Imperial Palace Hotel. O último encontro da organização foi nos arredores sérios de Oxford, mas Las Vegas - a cidade das ilusões, onde a Estátua da Liberdade olha além de Camelot para a Esfinge - revelou ser o local perfeito. Após dois dias de apresentações por cientistas e filósofos especulando como a mente constrói e desconstrói a realidade, nós estávamos ouvindo profissionais: James (O Fantástico) Randi, Johnny Thompson (O Grande Tomsoni), Mac King e Teller - mágicos que intuitivamente dominaram algumas das lições que estão sendo aprendidas em laboratório sobre os limites da cognição e atenção.

"Não era apenas um grupo de artistas de qualidade mundial", disse Susana Martinez-Conde, uma cientista do Instituto Neurológico Barrow, em Phoenix, que estuda ilusões ópticas e o que dizem sobre o cérebro. "Eles foram escolhidos a dedo devido ao interesse específico deles nos
princípios cognitivos por trás da mágica".

Ela e Stephen Macknik, outro pesquisador do Barrow, organizaram o simpósio, chamado apropriadamente de Mágica da Consciência.

Apollo, com seus olhos e mão, desviou minha atenção como uma luminária estilo "gooseneck", de forma que estava sempre apontada na direção errada. Quando ele parecia estar buscando algo no meu bolso esquerdo, ele estava retirando algo do direito. No final da apresentação, a platéia aplaudiu enquanto ele me entregava minha caneta, alguns recibos amassados e notas de dólar, assim como meu gravador de áudio digital, que estava em funcionamento o tempo todo. Eu não percebi que meu relógio tinha sido removido até o momento em que ele o retirou de seu próprio pulso.

"Ele é incrível", me disse Teller posteriormente enquanto partia às pressas para sua apresentação noturna ao lado de Penn no Rio.

Um tema recorrente na psicologia experimental é a estreiteza da percepção: quão pouco do alarido sensorial chega até a consciência. Mais cedo, antes do show de mágica, um neurocientista demonstrou um fenômeno chamado cegueira por desatenção com um vídeo feito pelo Laboratório de Cognição Visual da Universidade de Illinois.

No vídeo, seis homens e mulheres - metade deles de camisa branca e metade com camisa preta - estão trocando passes com duas bolas de basquete. É pedido aos espectadores que contem quantas vezes os membros de uma equipe, digamos a branca, conseguiram completar um passe, mantendo a bola fora do alcance da outra equipe. Eu segui fielmente as instruções e fiquei surpreso quando a cerca de 15 segundos de jogo, risadas começaram a surgir na platéia. Apenas quando assisti uma segunda vez eu percebi a pessoa com roupa de gorila vindo da esquerda da cena. (O vídeo está disponível online em viscog.beckman.uiuc.edu/grafs/demos/15.html.)

Apesar de sigilosos sobre informações específicas, os mágicos estavam tão interessados quanto os cientistas na discussão das ilusões cognitivas que se passam por mágica: disfarçar uma ação com outra, subentender informação que não está presente, explorar a forma como o cérebro preenche as lacunas - fazendo suposições, como colocou O Fantástico Randi, e as confundindo com fatos.

Soando mais como um professor do que um humorista e mágico, Teller descreveu como um bom mágico explora a compulsão humana de encontrar padrões, as impondo quando não estão presentes.

Na vida real, se você vê algo feito repetidas vezes, você o estuda e gradualmente pega um padrão", ele disse enquanto caminhava no palco segurando um balde de metal em sua mão esquerda. "Se você faz isto com um mágico, às vezes é um grande erro".

Tirando uma moeda atrás da outra do ar, ele as jogava, uma após a outra, tunc, tunc, tunc, dentro do balde. Assim que a platéia começava a perceber - de alguma forma ele estava escondendo as moedas entre os dedos - ele exibia sua palma vazia e, tunc, jogava outra moeda dentro do balde e então pegava outra em meio ao cabelo grisalho de um cavalheiro. Para o clímax do truque, Teller habilmente removeu os óculos de um espectador, os inclinou e, tunc, tunc, mais duas moedas caíram.

Ao realizar o truque uma segunda vez, anotando cada passo, nós vimos como fomos levados a casar indevidamente causa e efeito, a formar uma falsa hipótese atrás da outra. Às vezes as moedas vinham de sua mão direita, às vezes da esquerda, escondidas sob os dedos que   seguravam o balde.

Ele nos deixou com a definição de mágica: "A ligação teatral de uma causa e um efeito que não tem base na realidade física, mas que - em nossos corações - deveria".

Em seu discurso de abertura, Michael Gazzaniga, o presidente da associação de consciência, descreveu outra forma de prestidigitação - uma experiência de realidade virtual na qual colocou um par de óculos eletrônicos que projetavam a ilusão de um buraco profundo no que ele sabia ser um chão de concreto sólido. A adrenalina fez seu coração bater mais rápido e seus músculos ficarem tensos, um lembrete de que mesmo sem óculos o cérebro forma um mundo a partir de qualquer coisa que puder.

"De certa forma nossa realidade é virtual", disse Gazzaniga. "Pense em voar em um avião. Você está lá em cima em um tubo de alumínio, a 9 mil metros de altura, a mais de 900 km/h, e acha que está tudo bem".

Gazzaniga é famoso por seu trabalho com pacientes com cérebro dividido, cujos hemisférios esquerdo e direito foram desconectados como um tratamento de último recurso para epilepsia severa. Há experimentos que levaram à noção, simplificada em excesso pela cultura popular, de que o lado esquerdo do cérebro é predominantemente analítico enquanto o lado direito é intuitivo e despreocupado.

O lado esquerdo do cérebro, como colocou Gazzaniga, é o confabulador, constantemente maquinando histórias. Mas o meu ficou momentaneamente atônito quando, após sua palestra, eu passei por uma porta dentro do Venetian Resort Hotel Casino e entrei em uma simulação em ar
condicionado do Grande Canal. Meus olhos foram atraídos para o alto para a surpreendente ilusão de um céu "trompe l'oeil" e o que julguei serem corvos voando sobre minha cabeça. Olhando mais atentamente, meu cérebro descartou a teoria e vi que as negras curvas eram as bordas de discos - tachinhas gigantes prendendo o céu. Posteriormente me disseram que eram sprinklers automáticos, para o caso das nuvens se incendiarem.

"É o 'Show de Truman'", disse Robert Van Gulick, um filósofo da Universidade de Syracuse, assim que me juntei a ele em uma mesa com vista da versão da Praça de São Marcos. Uma brisa marítima entrava pela janela, as nuvens refletiam o sol do fim de tarde (e ainda permaneciam luminosas, por volta das 22h30, quando voltei para meu hotel). Como poderíamos nos certificar de que o mundo à minha volta também não é uma simulação? Ou que eu não sou apenas um cérebro em um tanque no laboratório de algum cientista maluco?

Van Gulick veio à conferência para falar sobre qualia, o senso subjetivo, cru, que temos de cores, sons, sabores, toques e cheiros. O crocante do crostini, o deslizar do penne alla vodka - uma pergunta que preocupa os filósofos é onde estas experiências pessoais se encaixam dentro de uma teoria puramente física da mente.

Como os físicos, os filósofos lidam com estes quebra-cabeças realizando experiências de pensamento. Em um recente trabalho, Michael P. Lynch, um filósofo da Universidade de Connecticut, concebeu a idéia de um "batedor de carteiras fenomenal", uma criatura imaginária, como Apollo o ladrão, que distrai sua atenção enquanto remove seu qualia, transformando você no que é conhecido no meio como um zumbi filosófico. Você pode pegar uma bola, assoviar uma melodia, parar em um sinal vermelho - agir exatamente como uma pessoa sem qualquer senso
de como é estar vivo. Se zumbis são logicamente possíveis, insistem alguns filósofos, então seres conscientes devem ser dotados de uma essência inefável que não pode ser reduzida a circuitos biológicos.

A fantasia de Lynch era um artifício para minar o argumento do zumbi. Mas se zumbis existem, provavelmente é em Las Vegas. Certa noite enquanto caminhava pelo salão do cassino do Imperial Palace - uma cacofonia de sinos badalando e arpejos eletrônicos - era fácil imaginar que os hominídeos parados em frente aos caça-níqueis eram apenas extensões das máquinas.

"Condicionamento intermitente", sugeriu Irene Pepperberg, uma professora associada adjunta da Universidade Brandeis que estuda a inteligência animal. Se você quiser treinar um rato de laboratório a puxar uma alavanca para receber comida, o reflexo será gravado de
forma mais profunda se a criatura for recompensada com certa regularidade, mas não sempre.

Pepperberg lançou um elemento imprevisível nos estudos da consciência com seus experimentos controversos com papagaios africanos. Com o cérebro "do tamanho de uma noz", como ela colocou, as aves exibem o que parecer ser o potencial cognitivo de uma criança pequena. Seu papagaio mais conhecido, Alex, pode olhar para uma bandeja de objetos e pegar aquele que tem quatro cantos e é azul. Ele também cunhou sua própria palavra para amêndoa -"cork nut".

Com aparições no canal "PBS" e uma ponta em um romance de Margaret Atwood, "Oryx and Crake", Alex entrou para o imaginário popular, enquanto Pepperberg luta para encontrar uma posição acadêmica segura. Os críticos não resistem a comparar Alex a "Clever Hans", o famoso
cavalo cuja habilidade aritmética foi exposta como sendo respostas aprendidas que seguiam as deixas sutis de seu treinador. Pepperberg disse que controla tal possibilidade em seus experimentos e acredita que seus papagaios estão pensando e se expressando por conta própria
com palavras.

Certa noite andando pela Strip eu avistei Daniel Dennett, o filósofo da Universidade Tufts, andando apressadamente na calçada do outro lado da rua em frente ao Mirage, que possui sua própria floresta tropical e vulcão. As marquises estavam piscando e os aparelhos de ar condicionado rugindo - Las Vegas deixando sua pegada de carbono com botinas nas areias de Nevada. Eu lhe perguntei se estava apreciando o qualia. "Você realmente sabe como ferir um sujeito", ele respondeu.

Por anos Dennett argumentou que o qualia, na forma visionária que foi  definida na filosofia, é ilusório. Em seu livro, "Consciousness Explained" (consciência explicada), ele apresentou um experimento de pensamento envolvendo uma máquina de provar vinho. Ponha uma amostra em um funil e uma série de sensores eletrônicos analisariam o conteúdo químico, consultaria um banco de dados e finalmente digitaria sua conclusão: "Um Pinot vistoso e suave, apesar de carecer de vigor".

Se o hardware e o software pudessem ser sofisticados o bastante, não haveria diferença funcional, sugeriu Dennett, entre o enófilo humano e a máquina. Logo, dentro do circuito se encontraria o qualia inefável?

Sentados em um bar no Imperial Palace, nós conversamos sobre um mistério diferente em que estava ponderando: o papel que as palavras exercem dentro do cérebro. Aprenda um pouco do linguajar do vinho e você repentinamente está equipado com as ancoras para definir suas fugazes impressões gustativas. As palavras, ele sugeriu, "são como cães pastores guiando as idéias".

Enquanto bebericava, ele experimentou outra metáfora, envolvendo uma técnica de garimpar ouro sobre a qual aprendeu na Nova Zelândia. Ouro e chumbo apresentam densidade semelhante. Se você salpicar o material em suspensão com chumbo grosso para caça e rodar a peneira, os grãos escuros rastrearão as esquivas partículas de ouro.

Com um saco de artifícios acumulados ao longo de eras, o cérebro realiza a prestidigitação suprema: o senso subjetivo do eu.  "Os mágicos de palco sabem que uma coleção de truques baratos costuma ser suficiente para produzir 'mágica'", escreveu Dennett, "assim como a Mãe Natureza, a suprema criadora de artifícios".

No final do show de mágico no qual fui depenado por Apollo, o Fantástico Randi chamou Dennett e outro voluntário pra ajudar em seu truque final. Enquanto Randi se sentava em uma cadeira, os dois homens ataram fortemente seus braços às suas coxas com uma corda.

"Daniel, você poderia tirar sua jaqueta para mim por um instante?" pediu o mágico. "Agora a coloque em frente às minhas mãos".

"Um pouco mais alto", disse Randi.

Sem perder um segundo, ele agarrou o colarinho e a puxou na direção do seu queixo. A platéia vibrou. Ou ele conseguiu escapar das cordas em uma questão de segundos ou suas mãos estavam livres o tempo todo.

"Permita às pessoas fazerem suposições e elas partirão absolutamente convencidas de que a suposição estava correta e que representa um fato", disse Randi. "Mas não necessariamente".

Tradução: George El Khouri Andolfato

sexta-feira, 24 de agosto de 2007

Cérebro determinado: o livre-arbítrio é uma ilusão?

24 de Agosto de 2007

Pare já de ler essa coluna. Não conseguiu, não é mesmo? E por que não? Esse é um dos muitos exemplos empregados pela neurociência para mostrar que, pelo menos em certas ocasiões, não temos o menor poder de decisão, já estaria tudo programado em nosso cérebro. Mas será mesmo verdade, estaríamos pré-determinados desde o nascimento? Conforme prometido anteriormente, escrevo hoje sobre algumas reflexões relacionadas ao livre-arbítrio e a neurociência.

Quando criança pensava em desafiar a morte para um duelo, caso vitorioso teria a imortalidade. Obviamente, não era o único que tinha essas idéias. Na famosa cena do filme "Sétimo Selo" (do já saudoso Ingmar Bergman), o cavaleiro Antonius desafia a Morte para uma partida de xadrez, tentando vencê-la através do conhecimento humano. Antonius se recusa a morrer sem ter compreendido o sentido da vida. Em jogo, o adiamento de sua sentença. Mas da Morte ninguém escapa...

A morte limita a questão do livre-arbítrio uma vez que estamos todos predestinados a morrer. Então só podemos ser realmente livres no período entre o nascimento e a morte. A coisa fica ainda mais restrita quando nos damos conta que somos um sistema físico-químico, funcionando de acordo com as leis do universo. E nossos comportamentos não parecem ser exceção.

Na década de 70, ensaios experimentais conduzidos pelo fisiologista Benjamin Libet, da Universidade da Califórnia em São Francisco, mostraram que impulsos nervosos podem ser previsíveis. Os experimentos demonstraram que os sinais elétricos obtidos do cérebro de voluntários podiam ser usados para prever, por cerca de meio segundo, a decisão entre duas ações motoras: apertar um botão ou estalar os dedos. Essa descoberta surpreendente demonstra que a ordem da atividade cerebral é contra-intuitiva: primeiro a escolha do movimento e só depois a consciência da decisão, ao invés do oposto. (Maiores detalhes em: "Mind Time: The Temporal Factor in Consciousness, Perspectives in Cognitive Neuroscience", Benjamim Libet, Harvard University Press 2004).

Esses resultados foram reproduzidos diversas vezes ao longo dos anos, inclusive com o uso de moderníssimos scanners de ressonância magnética com alta-resolução e, consistentemente, mostram que o cérebro consciente está sempre tentando alcançar as ações disparadas pelo inconsciente. "Não sabia que te amava até que ouvi minha própria voz dizendo isso" confessou o filósofo e matemático inglês Bertrand Russell para sua amante Ottoline Morrell durante um de seus diálogos noturnos. Assim como Russell, somos facilmente enganados quando a questão é assumir responsabilidade pelas nossas próprias ações.

A realidade está sempre correndo meio segundo à frente da nossa consciência da própria realidade. O "agora" já passou há meio segundo atrás e não foi notado pelo nosso sistema sensorial. Pior, nunca alcançaremos a realidade de forma consciente com o cérebro no estado atual. Não seria nem necessário comentar as implicações dessa descoberta, mas imagine se pudéssemos analisar a mente de um suposto assassino meio segundo antes dele cometer um crime. Seria ele culpado apenas pela intenção? Acho que já vi isso em algum filme...

Na cultura ocidental estamos constantemente insatisfeitos, queremos sempre mudar alguma coisa: perder peso, viajar mais, ler outros livros, etc. Curiosamente, esse sentimento vem da certeza de que somos livres para mudar o rumo de nossas vidas ou mesmo vencer dificuldades impostas pelos revezes da vida. Por que achamos que somos livres para decidir qualquer coisa? Talvez o livre-arbítrio sobreviva apenas como percepção, mas não como uma vontade real. Nós temos a experiência da escolha a todo momento (o que comer, o que vestir, com quem conversar) o que nos traz a ilusão da liberdade.

O fim do livre-arbítrio, ou sua redefinição como uma ilusão conveniente, pode causar uma revolução na nossa cultura moral e senso de responsabilidade legal. Afinal, isso significa que nós somos tão responsáveis pelas nossas ações quanto uma pedra ou um animal. No entanto, acredito que a grande maioria jamais iria aceitar isso, afinal parece que fomos programados para acreditar que somos livres.

Desses argumentos, desabrocha uma nova idéia na neurociência: o cérebro consciente está atrasado porque estaria fadado a se ocupar com milhares de atividades mundanas diariamente: vestir-se, tomar café, dirigir, ir ao banco, etc. Essa escravidão só será relaxada durante o sono ou em estados de "transe". No transe, pensar demais atrapalha. Essa é a base da meditação de certos monges budistas e uma forma excepcional de executar atividades que requeiram muita concentração, usada por atletas profissionais ou mesmo por você.

Tente dirigir pensando em todas suas ações - como se fosse a primeira vez. Além de ser extremamente complicado, você irá notar que tende facilmente a entrar no modo automático. Para continuar consciente, você tem que reprimir o inconsciente. Esse poder do veto limita o uso do livre-arbítrio humano, mas é suficiente para a maior parte das questões éticas humanas, afinal, a grande maioria dos códigos morais está baseado na repressão do cérebro questionativo: não matarás, não roubarás, e assim vai.

Difícil de aceitar que nosso cérebro altamente evoluído é facilmente ludibriado. Já estamos limitados demais pelo nascimento e morte, além das milhares atividades cotidianas que dominam nosso consciente. O que sobra do livre-arbítrio então? Na minha visão, parte desse determinismo foi (e ainda é) essencial para nossa sobrevivência: não dá pra pensar muito no momento em que você está em perigo, você age sem hesitar, inconsciente. Da mesma forma que um corredor profissional de 100 metros rasos, só tem consciência do apito inicial do juiz quando já está quase no meio da corrida, ou seja, cerca de meio segundo depois!

De fato, muitos dos experimentos inspirados em Libet foram baseados no sistema motor. Mas o que dizer de algo como a estética de uma obra de arte? Será que os impulsos elétricos seriam capazes de prever se gostaremos ou não de uma determinada pintura? Quando expostos a um ambiente novo, nossos sistemas sensoriais não estão mais limitados pelas atividades do dia-a-dia e surge a chance do momento criativo. Seu cérebro tem a chance de formar conexões novas, jamais pré-determinadas. Esse sim pode ser considerado um verdadeiro momento de liberdade, jamais vivido por um animal ou máquina. Assim, quanto maior o número de novas experiências a que você se expuser, mais livre será seu cérebro.

Outra forma de livre-arbítrio seria a própria plasticidade neuronal. Por exemplo, pessoas que nascem cegas conseguem usar grande parte do pré-destinado córtex visual para áreas não-relacionadas, como para o olfato, por exemplo. Mesmo pessoas com derrame e que perderam o movimento de algum membro, conseguem recuperar parte da atividade com treinamento específico. Mas essa reorganização cerebral depende exclusivamente da sua vontade de mudar. Reorganizando suas conexões nervosas, você muda quem você é, vencendo o determinismo original.

Assim, o determinismo e o livre-arbítrio podem sim coexistir em nosso cérebro. Usamos um ou outro dependendo da ocasião e do momento da evolução humana (seria legal descobrir que no futuro, ações cotidianas seriam automatizadas, libertando nosso cérebro para o processo criativo). Acho que isso deve incomodar muitos cientistas e filósofos, mas nada me convenceu do contrário. E como testar essa hipótese?

Todo sistema físico investigado até hoje pode ser classificado como determinístico ou aleatório, mas nunca as duas coisas. Vale lembrar que, paradoxalmente, teorias baseadas em mecânica quântica descrevem movimentos aleatórios de partículas microscópicas como base fundamental do que chamamos de realidade. Mas e o cérebro humano? Das duas uma: ou simplesmente não sabemos quais as equações para explicar alguns dos fenômenos neurais ou existe algo fundamentalmente novo que ocorre em sistemas ultracomplexos. Ainda não temos a resposta se o cérebro é um complicado conjunto de engrenagens, se é algo totalmente independente da física atual ou mesmo um misto dos dois. Desvendar esse mistério trará a resposta do quanto livre nós realmente somos.

Uma forma experimental de analisar o problema do livre-arbítrio consiste na manipulação de modelos matemáticos que simulem a atividade cerebral. Ou seja, será necessária a criação de um cérebro artificial. Diversos projetos já existem com essa finalidade, mas destaco um deles. O Blue Brain Project, um mega projeto resultante da colaboração entre a EPFL (Ecole Polytechnique Federale de Lausanne) e a IBM. A idéia é utilizar sistemas 3D que simulem pequenos blocos do córtex do cérebro de mamíferos. O projeto é ambicioso e vai levar um certo tempo até vermos resultados, mas é um bom começo.

Pode-se argumentar que esse tipo de estratégia nunca represente o que realmente acontece com o cérebro humano. Afinal, de acordo com princípios filosóficos básicos, nenhum sistema contém a completa representação de si mesmo e, dessa forma, você jamais conseguirá criar algo tão complexo quanto você mesmo. No entanto, pode-se deixar esse sistema complexo evoluir. O cérebro individual não é estático e evolui de várias formas: durante o desenvolvimento, usando retroelementos genéticos transponíveis de forma aleatória para a regulação da expressão gênica, ou mesmo no indivíduo adulto, através da inclusão de novos neurônios e da plasticidade sináptica -- todos podendo ser regulados pelo ambiente. Todo modelo que não incorporar essas variáveis estará fadado ao fracasso.

Enfim, mesmo com minha mente sempre incomodada e obcecada por liberdade, prefiro ter consciência que sou, pelo menos em parte, uma máquina determinista do que viver na ilusão de um puro livre-arbítrio existencial.
Alysson Muotri

terça-feira, 26 de junho de 2007

Ciência da alma? O "Penso, logo existo" perde força

26/06/2007


Cornelia Dean

Em 1950, em uma carta aos bispos, o papa Pio 12 abordou a questão da evolução. "A Igreja Católica Romana não faz necessariamente objeções ao estudo da evolução, contanto que este diga respeito aos atributos físicos", escreveu o papa na encíclica Humani Generis. Mas ele acrescentou: "A fé católica nos obriga a afirmar que as almas são imediatamente criadas por Deus".


O papa João Paulo 2° afirmou praticamente a mesma coisa em 1996, em uma mensagem à Academia Pontifícia de Ciências, um grupo de assessoria do Vaticano. Embora tenha observado que nos anos anteriores a evolução se tornou "mais do que uma hipótese", ele acrescentou que a idéia de a mente emergir de um mero fenômeno físico era "incompatível com a verdade sobre o homem".

Mas à medida que os biólogos evolucionários e os cientistas especializados nas neurociências cognitivas perscrutam o cérebro de forma cada vez mais profunda, eles descobrem mais e mais genes, estruturas cerebrais e outros fatores físicos relacionados a sentimentos como empatia, desgosto e alegria. Ou seja, eles estão descobrindo as bases físicas para os sentimentos dos quais emerge a sensação de moral - não só em pessoas, mas também em animais.

O resultado talvez seja o desafio mais poderoso à visão de mundo resumida por Descartes, o filósofo do século 17 que dividiu as criaturas do mundo entre a humanidade e o resto. Conforme os biólogos vão apresentando evidências de que os animais são capazes de exibir emoção e padrões de cognição que outrora se acreditava serem estritamente humanos, o enunciado de Descartes, "Penso, logo existo", perde a sua força.

Para muitos cientistas, a descoberta de que a reflexão moral é um resultado de atributos físicos que evoluem como tudo mais é apenas mais uma evidência contra a existência da alma, ou de um Deus que dota os humanos de almas. Para muitos crentes, especialmente nos Estados Unidos, essas descobertas demonstram o erro, ou até mesmo a perversidade, que é encarar o mundo em termos estritamente materiais. E elas provocam nos teólogos um ímpeto crescente para reconciliar a existência da alma com a crescente evidência de que os humanos não são, nem física nem mentalmente, uma classe em si.

A idéia de que as mentes humanas são o produto da evolução é "um fato incontestável", afirma o periódico "Nature" na edição deste mês, em um editorial a respeito das novas descobertas sobre a base física do pensamento moral. Um cabeçalho no editorial vai direto ao assunto: "Com todo o respeito às sensibilidades das pessoas religiosas, a idéia de que o homem foi criado à imagem de Deus pode, com toda certeza, ser descartada".

Ou, conforme V.S. Ramachandran, pesquisador do cérebro e professor da Universidade da Califórnia em San Diego, afirmou em uma entrevista, pode haver alma no sentido do "espírito universal do cosmo", mas aquele conceito de alma do qual freqüentemente se fala, "um espírito imaterial que ocupa cérebros individuais e que só evoluiu nos humanos - não passa de uma tolice completa". "A crença em tal tipo de alma é basicamente uma superstição", disse ele.

Para pessoas como o biólogo evolucionário Richard Dawkins, falar sobre alma é parte do discurso da fé religiosa, que ele compara a uma doença. E entre os psicólogos evolucionários, a fé religiosa não passa de um artefato evolucionário, uma predileção que evoluiu porque as crenças compartilhadas aumentam a solidariedade grupal e outras características que contribuem para a sobrevivência e a reprodução.

Não obstante, a idéia de uma alma divinamente inspirada não será descartada. Para citar apenas um exemplo, quando perguntaram aos dez candidatos presidenciais republicanos em um debate no mês passado se algum deles não acreditava na evolução, três ergueram a mão. Um deles, o senador Sam Brownback, do Estado do Kansas, explicou mais tarde em um artigo na página editorial deste jornal que não rejeita toda a teoria evolucionária. Mas ele acrescentou: "O homem não foi um acidente, e ele reflete uma imagem e um semblante únicos na ordem criada".

Esse é o ponto central da questão, segundo Nancey Murphy, filósofa do Seminário Teológico Fuller, que escreveu profusamente a respeito de ciência, religião e alma. Os desafios à unicidade da humanidade na criação são tão alarmantes quando a afirmação copernicana de que a Terra não é o centro do Universo, escreve ela no seu livro "Bodies and Souls of Spirited Bodies?" ("Corpos e Almas de Corpos Animados?"), publicado em 2006 pela Editora Cambridge. Murphy argumenta que assim como Copérnico derrubou a Terra do seu pedestal celeste, as novas descobertas feitas em pesquisas sobre a cognição retiraram os seres humanos da sua "localização estratégica" na criação.

Outro teólogo que escreveu bastante sobre o assunto, John F. Haught, da Universidade Georgetown, disse em uma entrevista: "Para muitos norte-americanos a única maneira de preservar a descontinuidade implícita na idéia de alma, de uma alma distinta, é negar a evolução, e vejo isso como algo infeliz".

Não existe nenhum desafio científico verossímil à teoria da evolução como uma explicação para a diversidade e a complexidade da vida na Terra.

Para Murphy e Haught, porém, as pessoas cometem um erro quando assumem que os humanos só podem ser dotados de uma alma se as demais criaturas não possuírem alma.

"A biologia evolucionária demonstra que a transição do animal para o humano é muito gradual para que faça sentido a idéia de que os humanos possuem almas e os animais não", escreveu Murphy, que é pastora da igreja Church of the Brethen (Igreja da Irmandade). "Todas as capacidades humanas atribuídas antigamente à mente ou à alma estão sendo agora estudadas com sucesso como processos cerebrais - ou, mais acuradamente, eu deveria dizer, como processos envolvendo o cérebro, o resto do sistema nervoso e outros sistemas corporais, todos interagindo com o mundo sócio-cultural. Portanto, trata-se de um raciocínio 'falho' querer distinguir os seres humanos do restante da criação".

Ela e Haught citam as idéias de Thomas de Aquino, o filósofo e teólogo do século 13 que, segundo Haught, "falou da existência de uma alma vegetal e de uma alma animal, assim como da alma humana". Haught, que falou perante a União Americana de Liberdades Civis ao contestar com sucesso os ensinamentos da teoria do design inteligente, uma prima ideológica do criacionismo, nas aulas de ciência de Dover, no Estado da Pensilvânia, afirma: "Da forma como vejo a questão, em vez de eliminar a idéia de alma a fim de fazer com que os humanos se encaixem mais harmoniosamente no restante da natureza, seria mais razoável reconhecer que existe algo de análogo à alma em todos os seres vivos".

Mas isso significa, digamos, que o Australopithecus afarensis, o proto-humano famosamente exemplificado pelo esqueleto fossilizado conhecido como Lucy, tinha uma alma? Haught faz uma pausa e, a seguir, diz: "Creio que sim. Acho que todos os nossos ancestrais hominídeos tinham, de alguma forma, uma alma, mas isso não exclui a possibilidade de que, à medida que a evolução continua, o formato da alma possa variar, assim como ocorre de um indivíduo para outro".