30/09/2007 - 11:31hDe músico e louco
Em seu novo livro, “Alucinações Musicais”, neurologista Oliver Sacks conta caso de gente que não fala, mas canta; que não anda, mas dança
GIOVANA GIRARDI
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
A descoberta, alguns anos atrás, de flautas de osso feitas por neandertais levantou uma discussão que há séculos intriga cientistas e filósofos: por que o homem desenvolveu a música e qual é a função dela para nós?
Numa época em que garantir a caçada do dia certamente deveria ser a preocupação central de nossos ancestrais, quem é que tinha tempo para sair cantarolando por aí? Seja lá por qual razão, alguém teve esse tempo. Ainda bem.
No mínimo é essa a sensação que se tem após ler o novo livro do neurologista inglês Oliver Sacks, “Alucinações Musicais”, lançado mundialmente nesta semana. Mais conhecido como o autor de “Tempo de Despertar”, que virou o filme homônimo protagonizado por Robin Willians e Robert De Niro, Sacks se consagrou por descrever, quase como um conto, casos clínicos surpreendentes.
Acima de tudo, são histórias de pessoas reais que bem poderiam ser personagens de ficção.
A nova obra trata de um tema que já vinha aparecendo de mansinho nos livros anteriores -a música, ou melhor, a musicofilia, como ele fez questão de frisar no título em inglês. “Para o bem ou para o mal”, como ele diz, temos um cérebro musical, somos seres musicais.
Mas, se para a maioria isso significa prazer, para alguns, como Sacks mostra no livro, pode indicar tortura -como ocorre com pessoas que sofrem de alucinação musical desencadeada pelos mais diversos barulhos. Um paciente seu, epiléptico, tem convulsões provocadas por qualquer tipo de música e anda com tampões de ouvido por Nova York.
Para outros, no entanto, música é sinônimo de paz. É a única chance de alívio de sintomas em certas doenças neurológicas, como mal de Parkinson e demência. Mas a melhora de movimento observada entre parkinsonianos cessa quando a música acaba. Já entre pessoas com demência, a melhora do humor e até das funções cognitivas podem durar dias.
Um dos casos mais dramáticos descritos pelo autor é do músico inglês Clive Wearing, que “aos quarenta e poucos anos” sofreu uma infecção no cérebro e passou a ter memórias de poucos segundos. Na tentativa de driblar essa situação, Wearing chegou a tentar fazer um diário, que acabou se reduzindo a anotações do tipo: “estou acordado”; alguns minutos depois, “desta vez estou acordado mesmo” e assim prosseguia até o final do dia.
Depois de um tempo ele começou a esquecer o passado também. Ele só não perdeu sua capacidade musical. Na semana passada, Sacks concedeu entrevista à Folha sobre o novo livro. Aos 74 anos, o médico já teve ele mesmo seus episódios de amusia (incapacidade total de compreender música) e alucinações musicais, mas prefere dar destaque mesmo aos seus pacientes. Leia a seguir:
Numa época em que garantir a caçada do dia certamente deveria ser a preocupação central de nossos ancestrais, quem é que tinha tempo para sair cantarolando por aí? Seja lá por qual razão, alguém teve esse tempo. Ainda bem.
No mínimo é essa a sensação que se tem após ler o novo livro do neurologista inglês Oliver Sacks, “Alucinações Musicais”, lançado mundialmente nesta semana. Mais conhecido como o autor de “Tempo de Despertar”, que virou o filme homônimo protagonizado por Robin Willians e Robert De Niro, Sacks se consagrou por descrever, quase como um conto, casos clínicos surpreendentes.
Acima de tudo, são histórias de pessoas reais que bem poderiam ser personagens de ficção.
A nova obra trata de um tema que já vinha aparecendo de mansinho nos livros anteriores -a música, ou melhor, a musicofilia, como ele fez questão de frisar no título em inglês. “Para o bem ou para o mal”, como ele diz, temos um cérebro musical, somos seres musicais.
Mas, se para a maioria isso significa prazer, para alguns, como Sacks mostra no livro, pode indicar tortura -como ocorre com pessoas que sofrem de alucinação musical desencadeada pelos mais diversos barulhos. Um paciente seu, epiléptico, tem convulsões provocadas por qualquer tipo de música e anda com tampões de ouvido por Nova York.
Para outros, no entanto, música é sinônimo de paz. É a única chance de alívio de sintomas em certas doenças neurológicas, como mal de Parkinson e demência. Mas a melhora de movimento observada entre parkinsonianos cessa quando a música acaba. Já entre pessoas com demência, a melhora do humor e até das funções cognitivas podem durar dias.
Um dos casos mais dramáticos descritos pelo autor é do músico inglês Clive Wearing, que “aos quarenta e poucos anos” sofreu uma infecção no cérebro e passou a ter memórias de poucos segundos. Na tentativa de driblar essa situação, Wearing chegou a tentar fazer um diário, que acabou se reduzindo a anotações do tipo: “estou acordado”; alguns minutos depois, “desta vez estou acordado mesmo” e assim prosseguia até o final do dia.
Depois de um tempo ele começou a esquecer o passado também. Ele só não perdeu sua capacidade musical. Na semana passada, Sacks concedeu entrevista à Folha sobre o novo livro. Aos 74 anos, o médico já teve ele mesmo seus episódios de amusia (incapacidade total de compreender música) e alucinações musicais, mas prefere dar destaque mesmo aos seus pacientes. Leia a seguir:
FOLHA - Após tantos anos observando os efeitos da música em pacientes, como o senhor definiria o papel da música para nós?
OLIVER SACKS - Acho que, de um modo geral, a música tem várias funções: transmitir emoções, juntar as pessoas, acalmar, animar. Ela está presente em todas as culturas do mundo e alguns acreditam que ela tenha precedido a linguagem. São tantas funções que não dá para definir em uma coisa só. Agora, como médico eu presenciei efeitos da música nos pacientes que são surpreendentes. O neurologista canadense Steven Pinker uma vez disse que a música é um luxo. Acho que ela não só não é luxo como para algumas pessoas ela é realmente uma necessidade. Alguns pacientes não respondem a mais nada, exceto à música. Seu potencial terapêutico é incrível. De fato, em alguns casos ela é a única terapia eficiente.
OLIVER SACKS - Acho que, de um modo geral, a música tem várias funções: transmitir emoções, juntar as pessoas, acalmar, animar. Ela está presente em todas as culturas do mundo e alguns acreditam que ela tenha precedido a linguagem. São tantas funções que não dá para definir em uma coisa só. Agora, como médico eu presenciei efeitos da música nos pacientes que são surpreendentes. O neurologista canadense Steven Pinker uma vez disse que a música é um luxo. Acho que ela não só não é luxo como para algumas pessoas ela é realmente uma necessidade. Alguns pacientes não respondem a mais nada, exceto à música. Seu potencial terapêutico é incrível. De fato, em alguns casos ela é a única terapia eficiente.
FOLHA - Quando o senhor começou a perceber isso?
OLIVER SACKS - Esse poder da música me chamou a atenção pela primeira vez na década de 1960. Foi quando entrei em contato com os pacientes pós-encefalíticos que descrevi em “Tempo de Despertar”. Ali vi pacientes paralisados se locomoverem com música. Vi pessoas com mal de Parkinson grave retomarem a função motora enquanto ouviam música de um modo como nenhum remédio era capaz de fazer. Desde então vi resultados parecidos com pessoas que sofriam de demência e somente ao ouvirem música conseguiam recobrar a consciência.
OLIVER SACKS - Esse poder da música me chamou a atenção pela primeira vez na década de 1960. Foi quando entrei em contato com os pacientes pós-encefalíticos que descrevi em “Tempo de Despertar”. Ali vi pacientes paralisados se locomoverem com música. Vi pessoas com mal de Parkinson grave retomarem a função motora enquanto ouviam música de um modo como nenhum remédio era capaz de fazer. Desde então vi resultados parecidos com pessoas que sofriam de demência e somente ao ouvirem música conseguiam recobrar a consciência.
FOLHA - O senhor vem flertando com a música já algum tempo. O assunto agora tomou um corpo maior?
SACKS - Você tem razão (risos). Eu realmente estive flertando com a música em “Tempo de Despertar”, “O Homem que Confundiu sua Mulher com um Chapéu” e em “O Antropólogo em Marte”. No começo, essas histórias pareciam só uma curiosidade, mas fui acumulando tantos casos ao longo dos últimos anos que percebi que era a hora de dedicar um livro inteiro ao assunto. Por exemplo, existia uma idéia de que as alucinações musicais [situação em que uma pessoa “escuta” perfeitamente uma música, às vezes uma orquestra inteira, tocando na sua cabeça] são raras, mas elas não são. Não só tive contato com muitos pacientes nessa situação como me correspondi com diversas outras pessoas assim.
SACKS - Você tem razão (risos). Eu realmente estive flertando com a música em “Tempo de Despertar”, “O Homem que Confundiu sua Mulher com um Chapéu” e em “O Antropólogo em Marte”. No começo, essas histórias pareciam só uma curiosidade, mas fui acumulando tantos casos ao longo dos últimos anos que percebi que era a hora de dedicar um livro inteiro ao assunto. Por exemplo, existia uma idéia de que as alucinações musicais [situação em que uma pessoa “escuta” perfeitamente uma música, às vezes uma orquestra inteira, tocando na sua cabeça] são raras, mas elas não são. Não só tive contato com muitos pacientes nessa situação como me correspondi com diversas outras pessoas assim.
FOLHA - Por que a música aparece como resultado de disfunções tão diversas quanto surdez e epilepsia (as tais alucinações musicais) ou num caso raro como o do raio (no livro o autor conta a história de Tony Cicoria, um cirurgião que não dava muita bola para música, mas, depois de ser atingindo por um raio, se tornou um exímio pianista)?
SACKS - Acredito que isso tenha a ver com a natureza do nosso cérebro. Para o bem e para o mal -mas acredito que mais para o bem-, temos um cérebro musical, um maquinário complexo e bastante vulnerável a vários tipos de distorção. Há normalmente um equilíbrio no cérebro, um sistema de verificação e correção. Mas, se uma parte é danificada ou excitada demais, seja por raio, epilepsia, derrame ou uma doença degenerativa, este sistema de equilíbrio pode ficar avariado, e tendências que normalmente seriam retidas nessa checagem acabam sendo liberadas. É o que parece ocorrer nos casos que eu chamo de “musicofilia” e o que pode ter acontecido, por exemplo, com Tony Cicoria [veja a história dele no texto à dir.].
SACKS - Acredito que isso tenha a ver com a natureza do nosso cérebro. Para o bem e para o mal -mas acredito que mais para o bem-, temos um cérebro musical, um maquinário complexo e bastante vulnerável a vários tipos de distorção. Há normalmente um equilíbrio no cérebro, um sistema de verificação e correção. Mas, se uma parte é danificada ou excitada demais, seja por raio, epilepsia, derrame ou uma doença degenerativa, este sistema de equilíbrio pode ficar avariado, e tendências que normalmente seriam retidas nessa checagem acabam sendo liberadas. É o que parece ocorrer nos casos que eu chamo de “musicofilia” e o que pode ter acontecido, por exemplo, com Tony Cicoria [veja a história dele no texto à dir.].
FOLHA - Quando o senhor conta o que ocorreu com Gordon B. e Sheryl C., duas pessoas que sofreram perda progressiva da audição e depois de um tempo começaram a ouvir um ruído horrível no cérebro, substituído depois por música, o senhor diz que é como se os cérebros deles estivessem impondo um ordem sobre a desordem. Como é isso?
SACKS - Gordon tem alucinações musicais quando corta grama -motivos musicais simplesmente surgem em sua cabeça. Ele sente que é como se o som do cortador estimulasse o seu cérebro à elaboração ou à invenção. Acredito que o que ocorre é que a mente sempre procura padrões e tenta organizá-los. Por exemplo, quando eu faço uma ressonância magnética, um procedimento que produz um barulhão, meu cérebro parece organizar esses sons em uma valsa.
SACKS - Gordon tem alucinações musicais quando corta grama -motivos musicais simplesmente surgem em sua cabeça. Ele sente que é como se o som do cortador estimulasse o seu cérebro à elaboração ou à invenção. Acredito que o que ocorre é que a mente sempre procura padrões e tenta organizá-los. Por exemplo, quando eu faço uma ressonância magnética, um procedimento que produz um barulhão, meu cérebro parece organizar esses sons em uma valsa.
FOLHA - Com base nas histórias apresentadas no livro, a impressão que se tem é que a música pode ser tanto um sintoma de um problema neural quanto também a sua cura. É isso mesmo?
SACKS - Sim. O cérebro humano, ou melhor, o organismo humano, é primorosamente sensível à musica. Essa sensibilidade pode ser usada para propósitos terapêuticos, como nas situações em que a música permite um paciente parkinsoniano falar e se mover ao lhe dar fluência e ritmo -algo que simplesmente não podemos produzir sozinhos. Mas algumas vezes nossa sensibilidade à música se vira contra nós, como quando ficamos ouvindo uma música se repetir sem parar na nossa cabeça. É algo que pode ser irritante, torturante até, mas que não podemos parar.
SACKS - Sim. O cérebro humano, ou melhor, o organismo humano, é primorosamente sensível à musica. Essa sensibilidade pode ser usada para propósitos terapêuticos, como nas situações em que a música permite um paciente parkinsoniano falar e se mover ao lhe dar fluência e ritmo -algo que simplesmente não podemos produzir sozinhos. Mas algumas vezes nossa sensibilidade à música se vira contra nós, como quando ficamos ouvindo uma música se repetir sem parar na nossa cabeça. É algo que pode ser irritante, torturante até, mas que não podemos parar.
LIVRO - “Alucinações Musicais” Oliver Sacks; Companhia das Letras; 352 págs., R$ 49.
Trechos
Trechos
“Agora ele tinha de batalhar para aprender não só a tocar Chopin, mas também a dar forma àquela música que tocava continuamente em sua cabeça, tentar reproduzi-la ao piano, registrá-la no papel. “Era uma luta terrível”, disse. “Eu me levantava às quatro da madrugada e tocava até sair para trabalhar, e quando voltava para casa ficava ao piano até a hora de ir dormir. Minha mulher não estava gostando nada. Eu estava possuído.”
Descrição de Oliver Sacks sobre Tony Cicoria, um cirurgião que nunca foi muito ligado à música até ser atingido por um raio. Depois disso, ele passou a “sentir um desejo insaciável de ouvir música”. Logo depois, começou a “ouvir música na cabeça”, aprendeu a tocar piano, virou compositor. Divorciou-se da mulher, “mas seu coração e sua mente agora estavam na música”.
Descrição de Oliver Sacks sobre Tony Cicoria, um cirurgião que nunca foi muito ligado à música até ser atingido por um raio. Depois disso, ele passou a “sentir um desejo insaciável de ouvir música”. Logo depois, começou a “ouvir música na cabeça”, aprendeu a tocar piano, virou compositor. Divorciou-se da mulher, “mas seu coração e sua mente agora estavam na música”.
“Faz vinte anos que Clive teve a encefalite e, para ele, nada avançou. Pode-se dizer que ele ainda está em 1985 ou, considerando sua amnésia retrógrada, em 1965. Em alguns aspectos, ele não está em lugar nenhum; saiu totalmente do espaço e do tempo. Ele não tem mais nenhuma narrativa interna, não leva uma vida no sentido em que o resto de nós o faz. E no entanto só precisamos vê-lo ao teclado com Deborah para sentir que nesses momentos ele volta a ser ele mesmo e está plenamente vivo.”
Sacks sobre Clive Wearing, músico e musicólogo que sofreu uma séria infecção no cérebro e perdeu completamente a capacidade de formar novas memórias. Ele se lembra apenas da mulher, Deborah, e da música.
Sacks sobre Clive Wearing, músico e musicólogo que sofreu uma séria infecção no cérebro e perdeu completamente a capacidade de formar novas memórias. Ele se lembra apenas da mulher, Deborah, e da música.
“Alguns eram incapazes de tomar a iniciativa para dar um passo, mas podiam ser levados a dançar e então faziam-no com desenvoltura. Alguns mal conseguiam proferir uma sílaba (…), mas às vezes conseguiam cantar, alto e claro.”
Sobre os pacientes pós-encefalíticos que pela primeira vez lhe chamaram a atenção para o poder terapêutico da música.
Sobre os pacientes pós-encefalíticos que pela primeira vez lhe chamaram a atenção para o poder terapêutico da música.
“Minha filha Gloria possui uma melodiosa voz de soprano e pode tocar no acordeão quase toda música que ouve. Tem um repertório de aproximadamente 2 mil músicas (…), mas não é capaz de somar cinco e três nem de cuidar independentemente de suas necessidades básicas.”
Carta de Howard Lenhoff a Sacks descrita no livro. Gloria sofre de uma rara doença conhecida como síndrome de Williams, que provoca profundas deficiência cognitivas nos portadores. Em compensação, praticamente todos compartilham paixão por música, e não é rara a ocorrência de ouvido absoluto, capacidade de distinguir o tom de qualquer nota.
Carta de Howard Lenhoff a Sacks descrita no livro. Gloria sofre de uma rara doença conhecida como síndrome de Williams, que provoca profundas deficiência cognitivas nos portadores. Em compensação, praticamente todos compartilham paixão por música, e não é rara a ocorrência de ouvido absoluto, capacidade de distinguir o tom de qualquer nota.
“Cantar não só diz: “Estou vivo, estou aqui”, mas pode expressar pensamentos e sentimentos que em dados momento não têm possibilidade de ser expressos pela fala. Ser capaz de cantar palavras pode ser muitos tranqüilizador para tais pacientes, pois mostra-lhes que suas habilidades de linguagem não estão irrecuperavelmente perdidas, que as palavras ainda estão “neles”, em algum lugar, embora seja preciso música para fazê-las aflorar.”
Sacks sobre pacientes com afasia, que se tornam incapazes de se comunicar verbalmente, mas que muitas vezes conseguem fazê-lo através de cantos.
Sacks sobre pacientes com afasia, que se tornam incapazes de se comunicar verbalmente, mas que muitas vezes conseguem fazê-lo através de cantos.
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