quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Pesquisa abre caminho para telepatia


Reuters
Quarta-feira, 17 de dezembro de 2008 - 12h13
TÓQUIO - Pesquisadores japoneses conseguiram reproduzir imagens de objetos observados por pessoas por meio de varreduras em seus cérebros, o que abre caminho para a comunicação mental direta entre os seres humanos.
Os cientistas esperam que a pesquisa, publicada na revista científica Neuron, dos Estados Unidos, venha a ajudar pessoas com problemas de fala ou médicos que estão estudando problemas mentais, ainda que existam questões de privacidade a considerar caso a situação chegue ao estágio em que alguém poderia ler os sonhos de uma pessoa adormecida.
"Quando desejamos transmitir uma mensagem, precisamos mover nossos corpos, por exemplo ao falar ou digitar em um teclado", disse Yukiyasu Kamitani, diretor de pesquisa do projeto, do Advanced Telecommunications Research Institute International, um instituto privado sediado em Kyoto, Japão.
"Mas se fosse possível transmitir informação diretamente do cérebro, surgiria uma forma de comunicação direta na qual a pessoa imaginaria o que deseja dizer, sem que precise se mover", disse Kamitani em entrevista telefônica à Reuters.
Tecnologia como essa poderia abrir as portas da comunicação a pessoas incapazes de falar ou ajudar a visualizar alucinações, o que facilitaria aos médicos o diagnóstico de distúrbios mentais, disse Kamitani.
Quando vemos, a luz é convertida em sinais elétricos pela retina, localizada na porção traseira do globo ocular, e depois processada pelo córtex visual do cérebro.
Pesquisadores de cinco instituições envolvidas no trabalho usaram uma máquina de ressonância magnética cerebral para observar os padrões de atividade do córtex visual.
A equipe de Kamitani calibrou um programa de computador por meio de exames em dois voluntários que visualizaram 400 imagens estáticas em preto, branco e tons de cinza.
Depois, os voluntários tiveram de visualizar diferentes figuras e letras do alfabeto em branco e preto.
O programa de computador que desenvolveram conseguiu reproduzir as figuras e letras que os voluntários haviam visto, ainda que com menos nitidez do que os originais.
"Nesse experimento, reconstruímos imagens do que as pessoas realmente viram, mas considera-se que o córtex visual do cérebro está ativo mesmo quando se imagina algo", disse Kamitani.
O próximo passo da equipe é estudar como conseguir a visualização de imagens dentro das mentes das pessoas, disse ele.
"Queremos saber como nossas experiências subjetivas e sonhos são expressados dentro de nossos cérebros", disse Kamitami, acrescentando que a pesquisa pode levar à produção de imagens de sonhos.
Se a equipe conseguir realizar esse feito, fortes medidas de salvaguarda da privacidade serão necessárias, afirmou o cientista.
"Conforme a precisão aumenta, é possível que a informação do que as pessoas querem manter em segredo possa ser visualizada enquanto estão dormindo."

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segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Japoneses recriam imagem vista por voluntário 'lendo-a' no cérebro

Japoneses recriam imagem vista por voluntário 'lendo-a' no cérebro

Técnica permite visualizar o que uma pessoa está enxergando.
Cientistas cogitam usar estratégia para ver até imagens de sonhos.
Salvador Nogueira

Capa da revista científica 'Neuron' destaca a pesquisa (Foto: Divulgação)

Os turistas japoneses são famosos por andar pelo mundo com suas câmeras fotográficas em riste, sempre prontos a tirar uma foto para registrar o que tiveram a chance de ver com os próprios olhos. Mas uma nova pesquisa, realizada por lá mesmo, promete tornar o aparelho inútil. Um grupo de pesquisadores conseguiu extrair imagens da visão de uma pessoa diretamente do cérebro.

Parece ficção científica, mas é a mais pura verdade. O feito, obtido pelo grupo de Yukiyasu Kamitani, dos Laboratórios de Neurociência Computacional da ATR, em Kyoto, foi reportado na última edição da revista científica "Neuron".

E o melhor de tudo: para "ler" as imagens que o indivíduo estava enxergando, os cientistas não precisaram fazer nada agressivo, como plugar eletrodos diretamente no cérebro ou algo do tipo. Os resultados foram obtidos graças às técnicas de imageamento cerebral. Eles usaram a famosa ressonância magnética funcional -- procedimento que permite observar que áreas do cérebro se ativam a cada momento -- para extrair as informações.

O experimento foi conduzido da seguinte maneira. Primeiro, o voluntário era submetido a diversas imagens relativamente simples, com apenas dez pixels de altura por dez de largura. Cada pixel podia ser apenas preto ou branco, para simplicar a coisa toda.

Enquanto ele ia observando cada uma das imagens, o aparelho de ressonância magnética passava o tempo todo analisando os padrões de atividade no cérebro -- especificamente na região responsável pela interpretação dos estímulos enviados pela visão.

Plugado ao aparelho de ressonância estava um computador, que usava as correlações entre imagens e atividade cerebral, para calibrar um padrão -- de forma a "aprender" que partes do cérebro se ativavam para representar cada um dos pixels das figuras apresentadas ao voluntário.

Por fim, chegava a parte realmente empolgante: imagens eram apresentadas ao voluntário, e o computador tentava, usando só os dados vindos da ressonância, recriar as imagens observadas.

Confira o resultado, impressionante, abaixo.
Foto: Divulgação

Acima, padrão de imagens exibido ao voluntário; abaixo, reconstruções feitas pelo computador (Foto: Divulgação)


Futuro de sonhos

Os pesquisadores limitaram a pesquisa a imagens de apenas duas cores (preto ou branco), com resolução pequena. Mas o princípio está comprovado. Resta apenas aprimorar a técnica para obter imagens mais e mais detalhadas e precisas.

"Embora tenhamos nos concetrado aqui na reconstruções de padrões de contraste [preto ou branco], nossa estratégia poderia ser usada para reconstruir imagens visuais definidas por outras características, como cor, movimento, textura e disparidade binocular", escrevem os pesquisadores.

Mas o mais empolgante mesmo é a sugestão que eles fazem de que, no futuro, talvez seja possível reconstruir imagens não de coisas que a pessoa está vendo no momento, mas viu no passado -- ou até mesmo imagens de sonhos!

"Interessantes são as tentativas de reconstruir estados subjetivos que são produzidos sem estimulação sensorial, como imagens pensadas, ilusões e sonhos", dizem os cientistas japoneses. "Vários estudos sugeriram que essas percepções subjetivas ocorrem no córtex visual" -- exatamente a área do cérebro que eles mapearam para obter as imagens no estudo.

Será que no futuro poderemos "gravar" nossos sonhos em vídeo, em vez de anotá-los num caderninho? E quanto às nossas memórias? E o que imaginamos? São perspectivas fascinantes, que se abrem com a pesquisa japonesa.

Mas, claro, os estudos terão de avançar muito até que cheguemos lá. Por ora, os turistas japoneses devem continuar atravessando o globo com suas maquinetas fotográficas em punho.

Grupo cria programa que lê pensamento

Usando ressonância magnética, japoneses conseguiram decodificar a visão de uma pessoa examinando o seu cérebro

Aprimoramento pode levar nova tecnologia a ser capaz de registrar sonhos; método remete a debate sobre ética e privacidade no futuro

DA "NEW SCIENTIST"
As letras para as quais você olha agora podem ser recriadas com um programa de computador usando mapeamento cerebral por ressonância magnética. Em um feito inédito na neurociência, um grupo de cientistas japoneses anunciou pela primeira vez uma tecnologia de "leitura da mente" capaz de recriar imagens a partir de nada mais do que puro pensamento.

O método foi apresentado em estudo sexta-feira na revista "Neuron". Experimentos semelhantes já haviam sido feitos, mas as imagens observadas eram "escolhidas" pelos cientistas e não produzidas diretamente pela máquina de leitura cerebral, como feito agora.

O neurocientista Jack Gallant, autor dos primeiros trabalhos nessa linha, já havia mostrado no início do ano que era possível identificar qual imagem, num grupo de várias, estava sendo observada pelos voluntários dos experimentos. Para fazer isso, criou um programa capaz de comparar a atividade cerebral das pessoas durante a observação de um objeto com a atividade pré-registrada num "treinamento". O programa conseguia então apontar qual imagem era a observada.

Agora, Yukiyasu Kamitani, do Laboratório de Neurociência Computacional ATR, em Kyoto, foi um passo além. Sua equipe usou uma imagem de atividade cerebral obtida em uma máquina de ressonância magnética funcional para recriar imagens em preto-e-branco a partir do zero.

"Ao analisar sinais cerebrais quando alguém vê uma imagem, podemos reconstruí-la", afirma Kamitani. Isso significa que a leitura da mente poderia ser usada para "extrair" qualquer coisa sobre a qual uma pessoa está pensando, sem os cientistas terem a menor idéia do que poderá vir.

Pixels mentais
"É absolutamente espantoso", comenta John-Dylan Haynes, do Instituto Max Planck para Cognição Humana, de Leipzig (Alemanha). "Isso é um passo realmente importante."
O experimento de Kamitani começa com uma pessoa observando uma seleção de imagens compostas de quadrados brancos ou pretos numa grade de dez por dez. Ao mesmo tempo, mapeia seus cérebros. Cada quadrado é como um pixel, um ponto na tela de computador.

O programa, então, acha os padrões de atividade cerebral que correspondem a cada pixel. Depois, a pessoa se senta na máquina de ressonância funcional e passa a olhar para figuras novas. É aí que um outro programa compara essa nova leitura com a anterior e reconstrói o quadro de pixels.

A qualidade de imagens obtida no experimento era um pouco baixa, mas foi suficiente para identificar as letras da palavra "neuron" (neurônio em inglês). Números e formas também foram mostrados às pessoas e puderam ser reconstruídos da mesma maneira (veja quadro à direita). Já vale como uma prova de princípio, diz Haynes .

Como a ressonância magnética funcional tem se aprimorado muito nos últimos anos, Kamitani afirma que seu quadro pode no futuro ser produzido com um número maior de pixels, produzindo imagens com muito mais qualidade.

O próximo passo dos cientistas é tentar reconstruir imagens sobre as quais as pessoas estão apenas pensando, sem vê-las diretamente. Seria então possível "fazer a filmagem de um sonho", diz Kamitani.

Haynes diz que isso pode levantar questões éticas no futuro. Publicitários, por exemplo, poderiam tentar ler os pensamentos dos transeuntes para adequar seus anúncios a elas.

Ladrões de sonhos
"Isso [a nova pesquisa] não leva necessariamente àquilo, mas o espírito do que está sendo feito está alinhado com com a leitura cerebral e com as aplicações que viriam com ela", afirma o neurocientista.

"Com uma técnica que permite ler o que as pessoas pensam, nós claramente precisamos de diretrizes éticas sobre quando e como isso pode ser feito", diz. "Muitas pessoas querem que seja possível ler suas mentes -uma pessoa paralisada, por exemplo. Mas não deveria ser permitido fazer isso com um propósito comercial."

O próprio Kamitani se diz ciente dos potenciais abusos que a tecnologia poderia propiciar. "Se a qualidade de imagens melhorar, poderia haver um sério impacto em nossa privacidade", diz. "Nós teremos que discutir com muitas pessoas -não apenas os cientistas- sobre como aplicar essa tecnologia. (CELESTE BEVIER)

domingo, 14 de dezembro de 2008

Iluminando os meandros do cérebro

Uma promissora combinação entre óptica e genética vem permitindo aos neurocientistas mapear e até controlar os circuitos cerebrais com precisão inédita por Gero Miesenböck
ALFRED T. KAMAJIAN
LUZ ORIENTADORA: Novos métodos que empregam a luz para revelar e controlar a atividade neural têm possibilidade de investigar os circuitos individuais em animais – estudo que deve também facilitar a compreensão do funcionamento do cérebro humano.
Em 1937 o grande neurocientista sir Charles Scott Sherrington, da University of Oxford, expôs o que viria a se tornar uma descrição clássica do cérebro em funcionamento. Ele imaginou pontos de luz sinalizando a atividade das células nervosas e suas conexões. Segundo ele, durante o sono profundo somente umas poucas partes remotas do cérebro brilhariam, dando ao órgão a aparência de um céu de noite estrelada. Mas ao despertar, “é como se a Via Láctea iniciasse uma verdadeira dança cósmica”, ele pondera. “Rapidamente a massa encefálica se transforma num tear encantado, onde milhões de agulhas cintilantes tecem um padrão dissolúvel –, mas nunca durável; uma verdadeira harmonia de padrões secundários alternantes.”

Embora Sherrington certamente não tenha percebido à época, sua metáfora poética abrigava um conceito científico importante, ou seja, revelava o funcionamento interno do cérebro através da óptica. A compreensão do modo como os neurônios cooperam para elaborar pensamentos e comportamentos permanece um dos problemas sem solução mais complicados da biologia no sentido amplo, principalmente porque os cientistas em geral não podem ver os circuitos neurais em ação. O procedimento padrão que investiga um ou dois neurônios com eletrodos revela apenas fragmentos de um todo, um quebra-cabeça complexo, mas incompleto. Assim, o sucesso em observar a comunicação entre os neurônios permitiria deduzir como os circuitos cerebrais se formam e como funcionam. Este conceito fascinante tem inspirado neurocientistas na tentativa de tornar real a visão poética de Sherrington.

Seus esforços deram origem a um novo campo chamado optogenética, uma fusão da engenharia genética com a óptica, para investigar tipos de células específicos. Pesquisadores já obtiveram êxito em visualizar as funções de vários grupos de neurônios. Além disso, a abordagem permitiu controlar de fato os neurônios remotamente, simplesmente ao ativar um interruptor de luz. Essas conquistas indicam a possibilidade de que, um dia, a optogenética possa desvendar os circuitos cerebrais e, quem sabe, até vir a ajudar no tratamento de certas doenças.

TIRADO DE “VIDEO-RATE NONLINEAR MICROSCOPY OF NEURAL MEMBRANE DYNAMICS WITH GENETICALLY ENCODED PROBES, ” BY ROBERT D. ROORDA, TOBIAS M. HOHL, RICARDO TOLEDO-CROWE, GERO MIESENBÖCK,
ESCUTA ÓPTICA: Equipando os neurônios com sensores moleculares que emitem luz quando essas células são ativadas, os neurocientistas rastreiam o processamento de informações conforme ele acontece nos circuitos neurais. A seqüência de quadros do vídeo acima, por exemplo, rastreou a atividade de neurônios sensíveis ao cheiro que afetam áreas específicas (circuladas) do cérebro de uma mosca. A estimulação desses neurônios levou a um aumento de fluorescência (pontos azuis), que acalmam as células silenciadas.




Informação Neural
As tentativas para concretizar a visão de Sherrington tiveram início na década de 70. Como os computadores, o sistema nervoso funciona a eletricidade; os neurônios codificam informações em sinais elétricos, ou em potenciais de ação. Esses impulsos, com tensões menores que um décimo de uma pilha AA, induzem uma célula nervosa a liberar moléculas neurotransmissoras que então ativam ou inibem células conectadas num circuito. Num esforço para tornar esses sinais elétricos visíveis, Lawrence B. Cohen da Yale University testou a capacidade de responder a diferenças de potencial com mudança de cor ou de intensidade de um grande número de corantes fluorescentes. Ele descobriu que alguns corantes de fato têm propriedades ópticas sensíveis à tensão elétrica. E tingindo neurônios com esses corantes, Cohen pôde observar sua atividade com um microscópio.

Ao reagir não a mudanças de tensão, mas ao fluxo de átomos carregados específicos, ou íons, os corantes ainda podem revelar o disparo neural. Quando um neurônio gera um potencial, os canais das membranas se abrem e íons de cálcio entram na célula, o que estimula a liberação de neurotransmissores. Em 1980 Roger Y. Tsien, hoje na University of California, em San Diego, começou a sintetizar corantes que poderiam indicar variações na concentração de cálcio, alterando a intensidade da luminescência com que brilhavam. Esses indicadores ópticos se mostraram extraordinariamente valiosos, abrindo novas janelas sobre o processamento de informações em neurônios simples e redes pequenas.

Mas os corantes sintéticos sofrem de um grave revés. O tecido neural é composto de muitos tipos de células diferentes. Estimativas sugerem que o cérebro de rato, por exemplo, comporta várias centenas de tipos de neurônios, além de vários tipos de células de suporte. Como as interações entre tipos específicos de neurônios formam a base do processamento da informação neural, para entender como um determinado circuito funciona devemos identificar e monitorar os agentes individuais e apontar quando eles são ligados e desligados. Como os corantes sintéticos colorem todos os tipos de células indiscriminadamente, em geral é impossível rastrear a origem dos sinais ópticos nos tipos específicos de células.



POR SUSANA Q. LIMA E GERO MIESENBÖCK, EM Cell, VOL. 121, NO 1; 2005, REPRODUZIDO COM AUTORIZAÇÃO DA ELSEVIER (padrões de atividade)
PADRÕES DE ATIVIDADE das moscas das frutas cujos neurônios produtores de dopamina foram concebidos para serem fotossensíveis mudaram dramaticamente quando os animais foram expostos a flashes intermitentes de luz. As moscas passaram de mal se mover (acima) a inspecionar em detalhe seus arredores (abaixo), reforçando a teoria de que a dopamina estimula o comportamento explorador.


Genes e Fótons
A optogenética nasceu da percepção de que a manipulação genética pode ser a solução para resolver este problema da pigmentação indiscriminada. Todas as células de uma pessoa contêm os mesmos genes, e o que distingue duas células entre si são as diferentes combinações de genes, ativados e desativados, em cada uma delas. Os neurônios que liberam o neurotransmissor dopamina, por exemplo, ao disparar precisam do maquinário enzimático para produzir e embalar a dopamina. Os genes que codificam os componentes desse maquinário são então ativados nos neurônios produtores de dopamina (dopaminérgicos); no entanto, permanecem desativados nos outros, não-dopaminérgicos.

Em teoria, se um interruptor biológico que acionou um gene produtor de dopamina estivesse ligado a um gene que codifica um pigmento, e o sistema interruptor-pigmento fosse construído dentro das células de um animal, este produziria o pigmento apenas em células dopaminérgicas. Se pudéssemos examinar o interior do cérebro dessas criaturas, veríamos as células dopaminérgicas funcionando, virtualmente, isoladas de outros tipos de células. Além disso, poderíamos observar estas células no cérebro ativo.

Os corantes sintéticos não podem realizar esse tipo de magia, porque sua produção não é controlada pelos interruptores genéticos, ativados somente em determinados tipos de células. O truque funciona apenas quando o corante é codificado por um gene – ou seja, quando o pigmento é a proteína. As primeiras demonstrações de que corantes codifica dos geneticamente podiam registrar atividade neural ocorreram há uma década, por equipes lideradas independentemente por Tsien, Ehud Y. Iasacoff da University of California, Berkeley, e por mim e James E. Rothman, hoje na Yale University.



m todos os casos o gene para o corante foi emprestado de um organismo marinho luminescente, tipicamente uma água-viva, que produz uma proteína verde fluorescente. Nós ajustamos o gene para que a proteína produzida pudesse detectar e revelar as mudanças na voltagem ou no cálcio subjacentes realçando a célula, bem como a liberação dos neurotransmissores que permitem a sinalização entre células. Munidos desses sensores de atividade codificados geneticamente, nós e outros pesquisadores criamos animais em que os genes codificados podiam ser ativados apenas em grupos de neurônios precisamente definidos. Muitos organismos prediletos dos geneticistas – incluindo minhocas, peixes zebra e ratos – foram analisados até o momento dessa forma, mas as moscas-das-frutas têm se mostrado particularmente prontas a revelar seus segredos diante da investida conjunta da óptica e da genética. Seu cérebro compacto é visível através de microscópio, sendo que circuitos inteiros podem ser registrados num único campo de visão. Além do mais, as moscas são facilmente modificadas geneticamente e um século de pesquisas conseguiu identificar muitos dos interruptores genéticos necessários para direcionar grupos específicos de neurônios. De fato, foi em moscas que Minna Ng, Robert D. Roorda e eu, todos à época no Memorial Sloan Kettering Câncer Center, em Nova York, registramos as primeiras imagens do fluxo de informações entre séries de neurônios em um cérebro intacto. Desde então, descobrimos novos arranjos de circuitos e novos princípios de funcionamento. No passado descobrimos neurônios no conjunto de circuitos de processamento de cheiros das moscas que parecem injetar um “ruído de fundo” no sistema. Especulamos que o barulho adicionado amplifica estímulos fracos, aumentando assim a sensibilidade do animal ao cheiro – uma vantagem na busca por alimento.

Os sensores se tornaram poderosas ferramentas para a observação da comunicação entre neurônios. Mas, no fim da década de 90, ainda tínhamos um problema. A maioria das experiências que investigam a função do sistema nervoso é muito indireta. Os pesquisadores estimulam a resposta no cérebro expondo o animal a uma imagem, um som ou um aroma e tentam chegar ao caminho resultante inserindo eletrodos e medindo os sinais elétricos captados nessas posições. Infelizmente as entradas sensoriais sofrem uma reformatação completa enquanto viajam. Assim, identificar com exatidão a que sinais se referem as respostas registradas a uma determinada distância do olho, ouvido ou nariz torna-se ainda mais difícil, quanto mais se distancia desses órgãos. Para os muitos circuitos cerebrais que, em lugar do processamento sensorial, dedicam-se ao movimento, pensamento ou emoção, a abordagem falha completamente: não há uma forma direta de ativar esses circuitos com estímulos sensoriais.

Da Observação ao Controle
A capacidade de estimular grupos específicos de neurônios diretamente, sem depender de estímulo externo para órgãos sensoriais, amenizaria esse problema. A questão, agora, era se conseguiríamos desenvolver um conjunto de ferramentas que não apenas fornecessem sensores para monitorar a atividade das células nervosas, mas também que possibilitasse a ativação imediata de tipos de neurônios específicos. Eu e Boris V. Zemelman, que atualmente trabalha no Howard Hughes Medical Institute, abraçamos esse problema. Sabíamos que se conseguíssemos programar um acionador, ou disparador, codificado geneticamente e controlado pela luz nos neurônios, superaríamos diversos obstáculos que detinham os estudos sobre circuitos neurais, usando eletrodos. Como o número de eletrodos que podem ser implantados no sujeito de um teste simultaneamente é limitado, com esta abordagem os pesquisadores conseguem ouvir ou excitar apenas um pequeno número de células por vez. Além disso, em determinados tipos de células, os eletrodos são alvos difíceis. E como deveriam ficar imóveis, impedem as experiências com animais móveis. Se pudéssemos recorrer a um interruptor liga/desliga para nos ajudar a encontrar mtodos os neurônios relevantes (os produtores de dopamina, por exemplo) e usar a luz para controlar essas células sem a nossa interferência, não precisaríamos saber com antecedência sua localização no cérebro para estudá-los. E não importaria se suas posições se alterasse conforme o animal se movimenta. Se a estimulação das células que contêm os acionadores despertasse uma mudança de comportamento saberíamos se essas células estariam operando nos circuitos que regulam esse comportamento. Ao mesmo tempo, ao fazer com que essas mesmas células carregassem um gene sensor, as células ativas se acenderiam, revelando sua localização no sistema nervoso. Supostamente, ao reconduzir a experiência repetidas vezes em animais isolados, para apresentar um tipo de célula diferente contendo um acionador, conseguiríamos juntar as peças de uma seqüência de eventos resultantes de excitação neural do comportamento e identificar todos os atores no circuito. Tudo o que precisávamos fazer seria descobrir um acionador geneticamente codificável que pudesse transformar um flash de luz em um pulso elétrico.

Para encontrar um acionador como esse decidimos que seria preciso verificar as células que geram sinais elétricos respondendo à luz, como os fotorreceptores dos nossos olhos. Essas células contêm uma antena que absorve a luz, chamadas rodopsinas, que, quando iluminadas, instruem os canais de íons nas membranas celulares a abrir ou fechar, alterando assim o fluxo de íons e produzindo sinais elétricos. Decidimos transplantar genes que codificam essas rodopsinas (mais alguns genes auxiliares necessários à função da rodopsina) em neurônios cultivados em uma placa de Petri. Pudemos então testar se a luz brilhante na placa levaria os neurônios a disparar. Nosso experimento funcionou – no início de 2002, quatro anos depois do desenvolvimento dos primeiros sensores geneticamente codificados aptos a relatar a atividade neural, estrearam os primeiros acionadores codificados geneticamente.



Moscas Controladas Remotamente

Recentemente pesquisadores listaram outras proteínas fotossensíveis, como a melanopsina, encontradas em células especializadas da retina que ajudam a sincronizar o ciclo circadiano com a rotação da Terra, como sendo acionadores. E o esforço conjunto de Georg Nagel do Instituto Max Planck de Biofísica em Frankfurt, Karl Deisseroth da Stanford University e Stefan Herlitze da Case Western Reserve University demonstraram que outra proteína, chamada canal-rodopsina 2 – que orienta os movimentos das algas – está apta a esta função. Há também uma variedade de acionadores codificados geneticamente que podem ser controlados via substâncias fotossensíveis sintetizadas por nós e por Isacoff e seus colegas da U. C. Berkeley, Richard H. Kramer e Dirk Trauner.

O passo seguinte foi demonstrar que nosso acionador funcionaria em um animal vivo, desafio que propus a Susana Q. Lima. Para conseguir provar esse princípio concentramo-nos em um circuito particularmente simples das moscas, constituído de uns poucos punhados de células. Sabia-se que esse circuito controlava um comportamento incorrigível: um reflexo de fuga dramático, em que o inseto rapidamente estende suas pernas para ter impulso para abrir suas asas e voar. O disparo inicial para essa seqüência de ações é um impulso elétrico emitido por dois dos cerca de 150 mil neurônios no cérebro da mosca. Esses chamados neurônios de comando ativam um circuito subordinado chamado de padrão gerador que instrui os músculos da mosca a mover seus braços e asas.

Descobrimos um interruptor genético que está sempre ativo nos dois neurônios de comando, e em nenhum outro – e um outro interruptor que fica ativo em neurônios do padrão gerador, mas não nos neurônios de comando. Usando esses interruptores preparamos moscas em que ambos os neurônios de comando e os neurônios geradores de padrão produziram nosso acionador fotoguiado. Para nossa satisfação, ambos os tipos de moscas levantaram vôo num flash de raio laser, que era intenso o bastante para penetrar a cutícula dos animais intactos e alcançar o sistema nervoso. Isso é uma confirmação de que as células de comando e geradoras de padrão participaram do reflexo de fuga, provando que os acionadores funcionaram como esperado. Como apenas os neurônios relevantes continham o acionador codificado geneticamente, eles “souberam” responder sozinhos ao estímulo óptico. Foi como transmitir uma mensagem pelo rádio para uma cidade com 150 mil residências, sendo que um número reduzido delas possuía o sintonizador necessário para decodificar o sinal, que ficou inaudível para as restantes.

Contudo, restava um dilema. Os neurônios de comando que originavam o reflexo de fuga estavam ligados a estímulos ópticos. Esses estímulos ativavam o circuito de fuga durante a transição da interrupção da luz, como acontece quando o vulto de um predador faz sombra. (Isso é evidente quando tentamos esmagar uma mosca: sempre que nossa mão se aproxima, o inseto voa, para nossa frustração.) Temíamos que no nosso caso o reflexo de fuga pudesse ser uma reação visual ao pulso do laser e não um resultado do controle óptico direto dos circuitos de controle ou de geração de padrão.

Para eliminar esse temor conduzimos um experimento terrivelmente simples: degolamos as nossas moscas. Restaram-nos então machos sem cabeça (que sobrevivem por um ou dois dias ) carregando um circuito gerador de padrão no interior dos gânglios torácicos, que formam um equivalente grosseiro da coluna vertebral dos vertebrados. A fotoativação desse circuito impulsionou os corpos no ar, que, sem isso, permaneceriam imóveis. Embora seus vôos sempre começassem com grande instabilidade e culminassem com colisões ou quedas espetaculares, sua simples existência provou que o laser controlou o próprio circuito gerador de padrão – esses animais descabeçados não podiam detectar a luz e nem reagir a ela de outro modo. (E suas manobras desajeitadas ainda mostraram vividamente que a grande inovação na aviação foi o vôo motorizado controlado, e não simplesmente o vôo motorizado.)

Também concebemos moscas com fotointerruptores acoplados apenas aos neurônios produtores do neurotransmissor dopamina. Quando expostas ao flash do laser essas moscas se tornam repentinamente mais ativas. Estudos anteriores indicavam que a dopamina ajuda os animais a predizer a recompensa e a punição. Nossas descobertas com as moscas corroboram esse cenário: além de mais ativos, os insetos também exploraram seu meio ambiente de forma diferente, como se reagindo a uma expectativa de ganho ou de perda alternada.

Um Precursor Inesperado
Três dias antes da publicação agendada dos relatos dessas experiências na revista Cell, eu voei até Los Angeles para dar uma palestra. Um amigo havia me dado o romance badalado de Tom Wolfe, recém-lançado, Eu sou Charlotte Simmons, certo de que eu apreciaria a forma como os neurocientistas foram retratados, sem contar o material que rendera ao livro o prêmio de pior sexo pela Literary Review. Durante o vôo li uma passagem na qual Charlotte assiste uma palestra de um certo José Delgado que também controla o comportamento animal à distância – não com acionadores codificados geneticamente fotoguiados, mas com sinais de rádio enviados a eletrodos implantados no cérebro por ele. Delgado, um espanhol, arriscara a própria vida para provar o poder de sua abordagem detendo a investida de um touro furioso. Isso, nas palavras do palestrante fictício de Tom Wolfe, era uma revolução na neurociência – a derrota definitiva do dualismo, a idéia de que a mente existe como uma entidade separada do cérebro. Caso as manipulações físicas do cérebro de Delgado tivessem a capacidade de alterar a mente de um animal, o argumento cairia por terra, pois os dois deveriam ser um só e o mesmo.

Quase caí da poltrona. Delgado era mesmo um personagem fictício ou real? Assim que desembarquei em Los Angeles, fiz uma busca na internet e encontrei uma foto de um matador com o controle remoto e seu touro. Descobri que Delgado havia lecionado na mesma universidade que eu, Yale, e escrevera um livro chamado Controle físico do espírito – Rumo a uma sociedade psicocivilizada, de 1971, em que resumia seus esforços para controlar movimentos, evocando memórias e ilusões, e destacando prazer ou dor (ver “A era esquecida dos primeiros chips cerebrais”, por John Horgan; SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL, ed. 42, novembro de 2005). O livro encerra com uma discussão sobre quais as implicações da capacidade de controlar a função cerebral para a medicina, a ética, a sociedade e até mesmo para a guerra. Com isso em mente não deveria me causar espanto quando, no dia seguinte à publicação do meu artigo, um jornalista americano quis saber ao telefone: “Então, quando vamos invadir outro país com um exército de moscas controladas remotamente?”.

A atenção da imprensa não parou aqui. No dia seguinte, a manchete do Drudge Report alardeava, “Cientistas Criam Moscas Controladas à Distância”, acima da notícia sobre a última aparição de Michael Jackson nos tribunais. Presumi que essa foi a fonte que inspirou uma sátira no programa Tonight Show cerca de uma semana depois, onde o apresentador Jay Leno pilotava moscas controladas remotamente em direção à boca do presidente George W. Bush – a primeira aplicação prática de nossa nova tecnologia.

Desde então pesquisadores vêm utilizando fotointerruptores para controlar outros comportamentos. Em outubro último, Deisseroth e Luis de Lecea, seu colega de Stanford, divulgaram resultados de uma pesquisa com camundongos, em que usaram fibras ópticas para levar a luz diretamente aos neurônios produtores de hipocretina – neurotransmissor na forma de uma pequena proteína, ou peptídeo – para saber se esses neurônios regulariam o sono. Os pesquisadores suspeitavam que a hipocretina tem esse papel pois certas raças de cães, que não apresentam receptores de hipocretina, sofrem crises de insônia. A nova pesquisa mostrou que a estimulação de neurônios da hipocretina durante o sono tendia a acordar os camundongos, reforçando aquela hipótese.

E no meu laboratório em Yale, o pós-doutor J.Dylan Clyne usou acionadores codificados geneticamente para obter pistas sobre as diferenças comportamentais entre os sexos. Os machos de muitas espécies animais chegam ao extremo ao cortejar o sexo oposto. No caso das moscas-das-frutas os machos vibram uma asa para produzir uma “canção” que as fêmeas consideram irresistível. Para investigar as bases neurais desse comportamento exclusivo dos machos, Clyne usou a luz para ativar o gerador de padrões responsável pela canção. Descobriu que as fêmeas também possuíam o conjunto de circuitos produtor de músicas. Mas, sob condições normais, não apresentam os sinais neurais necessários para ativá-lo. Essa descoberta indica que o cérebro de machos e de fêmeas tem em grande parte conexões semelhantes, e que as diferenças no comportamento sexual surgem da ação de interruptores-mestre posicionados estrategicamente para dispor os circuitos no modo masculino ou feminino

Terapia da Luz
Até o momento os pesquisadores conceberam animais para carregar um sensor ou um acionador nos neurônios específicos. Mas é possível equipá-los com ambos. E mais adiante pretendemos conseguir criar sujeitos contendo múltiplos sensores ou acionadores, que nos permitam estudar populações de neurônios de tamanhos variados num mesmo indivíduo.

Nossa autoridade recém-descoberta sobre os circuitos neurais vem criando grandes oportunidades para a pesquisa básica. Mas existem benefícios práticos? Talvez, embora eu considere que eles às vezes provocam muito alarde. O próprio Delgado identificou diversas áreas onde o controle direto da função neural poderia produzir benefícios clínicos: protética sensorial, terapias para doenças motoras (que já se tornaram realidade com a estimulação cerebral profunda no mal de Parkinson), e a regulação do humor e do comportamento. Ele enxergou esses usos em potencial como uma extensão direta e racional da prática médica existente, não como uma alarmante incursão inimiga nos campos minados da ética do “controle da mente”. De fato, delimitar uma fronteira definitiva entre os meios físicos para influenciar a função cerebral e as manipulações de substâncias químicas pode parecer arbitrário, sejam elas drogas psicoativas ou o drinque que ajuda a relaxar no final de um dia puxado. Na verdade, as intervenções físicas podem ser contestavelmente dirigidas e dosadas com maior precisão do que as drogas, restringindo assim os efeitos colaterais.

Alguns estudos começam a explorar a aplicabilidade da optogenética a problemas clínicos. Em 2006, pesquisadores usaram canais de íons fotoativados para restabelecer a fotossensilbilidade em neurônios da retina sobreviventes em camundongos com degeneração de fotorreceptores. Eles utilizaram um vírus para levar o gene codificado da canal-rodopsina 2 até as células, injetando-o diretamente nos olhos dos animais. As retinas reparadas enviaram sinais provocados pela luz ao cérebro, mas ainda não se sabe se esse procedimento teve sucesso em restaurar a visão.

Apesar do apelo teórico a optogenética enfrenta um obstáculo prático significativo em humanos, uma vez que requer a introdução de um gene estranho – aquele codificado com o acionador fotocontrolado – no cérebro. Até o momento a tecnologia da terapia gênica ainda não venceu o desafio, e autoridades sanitárias demonstram tamanha preocupação quanto aos riscos associados que, no presente, esse tipo de intervenção está proibida, exceto se com finalidade estritamente experimental.

A oportunidade imediata proporcionada ao controlarmos os circuitos cerebrais – ou mesmo outras células eletricamente excitáveis, como as que produzem hormônio e as que formam os músculos – é poder revelar novos alvos para drogas; por exemplo, se as manipulações experimentais dos grupos de células X, Y e Z levam o animal a comer, dormir ou arriscar-se, então, X, Y e Z são alvos em potencial para novas drogas para tratar a obesidade, a insônia e a ansiedade, respectivamente. Identificar os compostos que regulam os neurônios X, Y e Z pode resultar na maior eficiência terapêutica para doenças que, até o momento, não são tratadas, ou em novas aplicações para drogas existentes. Há muito ainda a descobrir, mas o futuro da optogenética promete ser brilhante.

CONCEITOS-CHAVE - Neurocientistas tradicionalmente têm estudado o funcionamento do cérebro estimulando e registrando a atividade de células nervosas isoladas com eletrodos. Mas esse método é indireto, tornando a análise de neurônios específicos muito difícil.

- O novo campo da optogenética, que combina engenharia gênica com luz para observar e controlar grupos de neurônios, tem permitido investigar circuitos neurais individualmente – abordagem que irá revolucionar o estudo das funções cerebrais.
—Os editores


[APLICAÇÃO] POTENCIAL TERAPÊUTICO
ALFRED T. KAMAJIAN
A estimulação optogenética pode vir a suplantar a estimulação cerebral profunda (ECP) como forma de tratar o mal de Parkinson, entre outras doenças. A ECP estimula partes do cérebro que controlam o movimento com um marcapasso e um eletrodo implantado, bloqueando assim os sinais nervosos indóceis que provocam os tremores e outros sintomas do mal. A estimulação optogenética tem potencial para agir sobre as células com muito maior precisão que a dos eletrodos usados na ECP. Contudo, para chegar às células corretas para produzir a proteína fotossensível , o tratamento optogenético deve exigir que os pacientes se submetam a uma terapia genética proibida atualmente por questões de segurança.







PARA CONHECER MAIS Transmission of olfactory information between three populations of neurons in the antennal lobe of the fly. Minna Ng, Robert D. Roorda, Susana Q. Lima, Boris V. Zemelman, Patrick Morcillo e Gero Miesenböck, em Neuron, vol. 36, no 3, págs. 463-474; 2002.

Remote control of behavior through genetically targeted photostimulation of neurons. Susana Q. Lima e Gero Miesenböck, em Cell, vol. 121, no 1, págs. 141-152; 2005.

Neural substrates of awakening probed with optogenetic control of hipocretin neurons. Antoine R. Adamantidis, Feng Zhang, Alexander M. Aravanis, Karl Deisseroth e Luis de Lecea, em Nature, vol. 450, págs. 420-424; 2007.

Sex-Specifi c control and tuning of the pattern generator for courtship song in Drosophila. J. Dylan Clyne e Gero Miesenböck, em Cell, vol. 133, no 2, págs. 354-363; 2008.

Jill Taylor: Um derrame de lucidez





Neurocientista sofre derrame e ajuda seu cérebro na recuperação

Americana Jill Bolte Taylor escreveu livro descrevendo experiência.
Ela é neuroanatomista, e ganhou nova perspectiva sobre o cérebro.

Edson Franco Da Galileu

    A neuroanatomista Jill Taylor, frente a frente com um cérebro (Foto: Kip May/Divulgação)

    Em 9 de dezembro de 1996, a neuroanatomista norte-americana Jill Bolte Taylor tinha 37 anos e foi para a cama com uma preocupação: como abastecer o banco de cérebros da Universidade Harvard, onde trabalhava, com órgãos recém-retirados de vítimas de doenças mentais. Na manhã seguinte, seu mundo racional começou a se desintegrar.

    Um coágulo no hemisfério esquerdo (ligado à razão) do seu cérebro provocou um derrame. Assim, ela teve de contar apenas com o hemisfério direito (associado ao pensamento simbólico e à criatividade) em um processo de recuperação que partiu da estaca zero. Quando a mãe da cientista — uma ex-professora de matemática — tentou ensinar o que era 1 + 1, ouviu como resposta: “O que é 1?”.
     Passados 12 anos, uma cirurgia arriscadíssima e muita terapia, Jill voltou a dar aulas — na Faculdade de Medicina da Universidade de Indiana — e diz que já recuperou todos os seus arquivos de memória. Essa experiência rendeu o recém-lançado livro “A Cientista que Curou Seu Próprio Cérebro” (Ediouro) e a escolha pela revista “Time” como uma das 100 pessoas mais influentes do mundo em 2008. Leia a conversa da doutora com a revista Galileu.

    Pergunta - Passados 12 anos desde o derrame, você acredita que já tenha reaberto todos os seus arquivos mentais? Ou, por exemplo, quando você encontra velhos amigos, eles sempre lembram de coisas que você, em tese, deveria ter na memória sem a ajuda deles?

    Jill Taylor - Passei oito anos em recuperação. Sempre fui muito intuitiva e não me apegava a toneladas de detalhes. Assim, há muitas coisas que eu não codifiquei ou tentei me lembrar. Exemplo disso é o meu bolo de aniversário quando eu completei dez anos. Hoje eu sei como ele era — porque alguém me disse —, mas, antes do derrame, eu não seria capaz de descrevê-lo. Tenho a consciência de que sei coisas sobre o meu passado que ninguém me contou depois do derrame. Assim, acredito que eu tenho a maioria das minhas memórias de volta.

    Pergunta - Mesmo sem experiência médica, sua mãe foi muito eficiente em te ajudar. Foi instinto? Experiência em ensinar?

    Taylor -
    Acho que a experiência e os dons naturais dela, tanto como mãe como boa professora, a prepararam para enfrentar essa situação. Ela prestava muita atenção às minhas necessidades e me ajudava a encontrar minhas próprias soluções para os problemas. Nós falávamos muito sobre o cérebro, assim ela sabia de todos os meus temores. E nós duas concordávamos que nada nem ninguém sabia mais sobre o tratamento mais conveniente do que o meu próprio cérebro. Assim, se ficava cansado, deixávamos que ele dormisse.

    Pergunta - A sua experiência pessoal mudou o modo como você vê e sente os papéis desempenhados pelos dois hemisférios do cérebro?

    Taylor -
    Completamente. Antes do derrame, eu tinha uma visão geral do papel de cada hemisfério, mas eu não tinha a menor idéia de como dizer qual parte do meu cérebro estava contribuindo com qual informação para formar a minha percepção da realidade.

    Pergunta - O que você mudaria na maneira como os derrames são tratados?

    Taylor -
    Eu deixaria as pessoas dormirem quando se sentissem cansadas e iria tratá-las com compaixão quando estivessem acordadas. Assumiria que o cérebro é capaz de se recuperar e o trataria com respeito. Em vez de me referir aos pacientes como “vítimas”, passaria a chamá-los de “sobreviventes”! Falaria que as pessoas “tiveram” um derrame em vez de “sofreram”.

    Pergunta - No livro, você escreveu que tem uma paixão por dissecar corpos. Quando essa paixão começou?

    Taylor -
    Quando eu era uma garotinha de cerca de 8 anos, minha mãe me levou ao Museu de Ciência de Chicago. Havia uma exposição com pequenos fetos e embriões dentro de vidros. As idades variavam de poucas semanas até nove meses. Eu fiquei absolutamente fascinada pela exposição, e esse foi o real começo do meu interesse em dissecação.

    Pergunta - Depois de reconstituir seu hemisfério esquerdo, em que você se assemelha e difere da Jill pré-derrame?

    Taylor -
    Eu continuo tão esperta quanto antes, além de ter as mesmas capacidades cognitivas e intelectuais. Mas agora eu decidi gastar meu tempo fazendo coisas que vão ajudar outras pessoas, em vez de focar toda a minha energia na carreira. Estou mais interessada em ajudar a humanidade, e antes meu principal objetivo era escalar os degraus do mundo acadêmico.

    Pergunta - O fato de ter utilizado com mais freqüência o seu hemisfério direito alterou o seu pensamento? Você se lembra de como ele era antes do derrame?

    Taylor -
    Agora ele está excepcional porque eu dediquei um tempo trabalhando essa parte do meu cérebro. Imediatamente depois do derrame, a sensação de que eu estava criativa era ainda mais clara e excitante. E essa sensação acabou se traduzindo na minha arte com vitrais.

    Pergunta - Por falar em arte, além de confeccionar vitrais, você toca violão. Foi especialmente complicado recuperar esses seus talentos?

    Taylor -
    Foi bem mais fácil que os cálculos matemáticos, mesmo aqueles mais elementares. Isso porque os talentos artísticos estão associados ao hemisfério direito do cérebro. Com a ausência temporária do meu hemisfério esquerdo, esses talentos até melhoraram.

    Pergunta - Se a Jill do passado escrevesse um livro sobre uma experiência pessoal, seria muito diferente desse?

    Taylor -
    Acho que seria um livro sobre algo bem aventureiro, como saltar de um avião. Outra idéia seria uma obra didática sobre o cérebro.


    segunda-feira, 24 de novembro de 2008

    Instituto em Natal abre mais um centro e lança 'câmpus do cérebro'

    Unidade de primatologia é a nova etapa do projeto dos cientistas brasileiros Miguel Nicolelis e Sidarta Ribeiro
    Daniel Piza
    Os motoristas de táxi de Natal (RN) ainda não sabem onde fica, mas o Instituto Internacional de Neurociências de Natal Edmond e Lily Safra (IINN-ELS) está no mapa-múndi científico. Já tem um centro de pesquisas, uma escola na capital e outra em Macaíba (a 20 km de Natal), onde em breve haverá outro centro de pesquisas. No terreno em frente, erguerá até 2010 o “câmpus do cérebro”, com mais 25 laboratórios e uma escola regulamentar para mil alunos. “A gente já provou que é capaz de atrair recursos e produzir ciência aqui”, comemora Sidarta Ribeiro, diretor de pesquisas.
    O instituto é um sonho realizado do neurocientista Miguel Nicolelis e de seu ex-aluno Sidarta gestado há cerca de cinco anos. Ativo desde o ano passado, já reúne mais de 30 pesquisadores vindos de vários Estados e de outros países, como Chile e Portugal.
    Os laboratórios estão conectados em rede com outros dois que Nicolelis dirige, na Universidade Duke (Carolina do Norte, EUA) e em Lausanne (Suíça), e com o do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo. As instalações têm padrão internacional e, em alguns casos, até mais espaço do que um equivalente americano ou europeu.
    Em paralelo, o instituto também abriu a Escola Alfredo J. Monteverde num bairro de Natal de nome significativo, Cidade Esperança, onde são dados cursos de ciência e tecnologia para crianças e adolescentes de escolas públicas. Nicolelis fez questão de que o centro de pesquisa viesse associado a um projeto educacional. “Nada melhor do que o método científico para tornar a educação mais agradável”, diz o presidente do instituto.
    Para chegar até aqui, porém, os tormentos foram muitos. Sidarta, que mora em Natal há dois anos e meio, conta que chegou a ficar com falhas na barba tal o estresse que passaram para abrir o instituto no bairro da Candelária, próximo ao centro da cidade. “Na verdade, isto aqui é o plano C”, diz. “O plano A era construir o câmpus do cérebro no terreno que a universidade (Federal do Rio Grande do Norte, UFRN) nos doou em 2003. Mas, como tudo era demorado, decidimos alugar este prédio em Natal para começar o trabalho. Depois veio o plano B, que é o centro de pesquisa que vamos inaugurar em Macaíba, dentro do terreno da Escola Agrícola da UFRN.”
    Inovação
    Burocracia dificultou início do trabalho no RN
    Importação de equipamentos esbarrou em entraves burocráticos, greves alfandegárias e impostos altos
    Daniel Piza
    As demoras para concretizar o sonho do Instituto Internacional de Neurociências de Natal Edmond e Lily Safra (IINN-ELS) deveram-se a vários fatores. Faltavam, por exemplo, incentivos para investimentos privados. O Rio Grande do Norte era um dos poucos Estados que não tinham uma fundação de amparo à pesquisa, o que passou a ter mais tarde.
    A importação de equipamentos da Universidade Duke - cujos laboratórios são dirigidos por Miguel Nicolelis, cientista que idealizou o instituto - esbarrou em uma série de entraves burocráticos, greves alfandegárias e impostos altos. A estrada até o futuro câmpus só começou a ser construída agora, depois de licitação.
    “Vivemos situações absurdas”, resume Sidarta Ribeiro, diretor de pesquisas do instituto. “No Brasil é besteira fazer uma compra em outubro. Você paga, mas a liberação oficial leva três meses e, como antes de março nenhuma compra pode ser feita, o equipamento só chega seis meses depois do pagamento. O jeito é esperar o carnaval passar.” Ele conta seu desespero quando 14 cérebros de rato vindos do Chile foram entregues no aeroporto, mas não havia refrigerador para evitar que descongelassem.
    Sidarta mostra com ânimo o prédio em Macaíba onde o centro de primatologia do instituto começará a funcionar, provavelmente em junho. Há sala de cirurgia, laboratório de biologia molecular, arena para os sagüis (onde também será estudada a comunicação entre eles), auditório para 120 pessoas (haverá um curso de altos estudos com 24 professores estrangeiros em julho), uma câmara fria e salas de computador. Tudo pronto, em modernas instalações. Mas a inauguração depende da liberação da alfândega e da autorização do Ibama para o envio de animais. Há previsão? Sidarta dá um sorriso irônico. “As previsões nunca se concretizam.”
    Agora ele e Nicolelis acham que “o pior já passou”. Sidarta, de 37 anos, não esconde sua satisfação em estar, “pela primeira vez na vida”, à frente de um laboratório bem equipado e “cheio de funcionários”. De papete e já usando “pronto” em quase todas as falas, está ambientado. Até já dá aulas - de capoeira. Na unidade de Natal, mostra cada um dos laboratórios, além dos biotérios. Destaca a sala da coordenadoria científica, onde se faz o “lab management” (a gestão dos laboratoristas), “algo que não existia no Brasil”. Mostra os eletrodos de tungstênio manufaturados no próprio instituto, que estuda sua biocompatibilidade ao implante em seres vivos.
    O instituto também pesquisa a interface cérebro-máquina, principal linha de Nicolelis, e vai estudar o mal de Parkinson. Nos corredores estão pendurados cartazes plásticos com resumo dos principais artigos científicos escritos por Nicolelis com Sidarta e outros membros da rede.
    Ter ao menos essa dupla de cientistas renomados ajuda o instituto a crescer - e a atrair pesquisadores como a bióloga Catia Mendes Pereira. Formada na Escola Paulista e bolsista do CNPq, ela abraçou com entusiasmo o projeto de Natal, para onde veio com marido e filhos no ano passado. “Era uma experiência pessoal e profissional bem atraente, sobretudo por trabalhar com nomes tão importantes.”
    Aulas de ciência para não ser conformista
    Nas escolas do instituto em Natal, jovens estudantes descobrem o prazer de aprender as várias disciplinas
    Daniel Piza
    Os cursos científicos para estudantes das escolas públicas de Natal não são um detalhe no trabalho do Instituto Internacional de Neurociências, um apêndice social para a boa imagem do centro de pesquisa. São, na verdade, a outra perna que o sustenta. “Aqui o aluno aprende a duvidar, a questionar, a defender seu ponto de vista”, diz a diretora de projetos e ações sociais do instituto, Dora Montenegro. “A ciência é usada para ele estruturar o pensamento a não ser conformista. O conteúdo é meio, não fim.”
    Nas duas unidades da Escola Alfredo J. Monteverde, uma em Natal e a outra em Macaíba, é isso que se vê. Os alunos, que são escolhidos por sorteio entre os inscritos das escolas da região, aprendem com mais prazer e participam mais das aulas.
    Eles fazem do 6º ao 9º ano regulamentar num período; duas vezes por semana no outro período, durante três horas e meia cada dia, vêm cursar ao menos duas disciplinas por semestre.
    Sem pichação
    Em Natal, onde estudam 600 alunos, há laboratórios de biologia, química, física e eletrônica e oficinas de “ciência & arte”, história e robótica. Os estudantes mais velhos também ajudam a fabricar instrumentos e objetos. A escola tem microscópios, computadores e até telescópio, entre muitos outros equipamentos. “Aqui não há pichação, não há brigas. A gente vê no rosto deles que gostam de estar aqui”, diz Dora Montenegro.
    A estudante Amália Caroline, de 13 anos, que cursa o 8º ano em sua escola, diz o mesmo: “Aqui eu aprendo mais. Gosto muito de física, por exemplo, que antes eu achava que era chato.”
    Na unidade de Macaíba, com 400 alunos, há oficinas sobre identidade regional, eletrônica e “ciência & movimento”. Nas paredes dos corredores, vemos desenhos que ilustram como teria sido o Big Bang, a origem do universo. A idéia é que muitos desses adolescentes possam um dia ocupar as paredes dos centros de pesquisa com muitos trabalhos originais.



    Entrevista

    Para cientista, entrada de equipamentos no País é complicada e as leis não atendem o transporte de animais de pesquisa
    Daniel Piza
    Se o cérebro funciona como “uma democracia de neurônios”, em sua própria frase, Miguel Nicolelis, de 47 anos, é um de seus maiores cientistas políticos. Colegas dizem que há um cérebro “antes de Nicolelis” e outro “depois de Nicolelis”. Fez demonstrações empíricas sobre a dinâmica dos neurônios, desenvolveu um modelo para entendê-la e passou a criar máquinas de interface que permitem que o cérebro as opere à distância. Graças a ele, é possível seqüenciar muito mais neurônios por mais tempo. Tal descoberta o pôs na lista de candidatos ao Prêmio Nobel.
    Médico e cientista paulistano, o presidente do Instituto de Neurociências de Natal passa a vida em laboratórios e hotéis. Na semana retrasada, estava na Coréia do Sul. No domingo, estava no Palestra Itália vendo seu time ser campeão paulista e, na última quarta, falava da Carolina do Norte por celular com o Estado. Ele defende mudanças na política científica do Brasil.
    Com base na experiência dos últimos cinco anos, em que houve problemas burocráticos e alfandegários, o que o sr. sugere para que o apoio a iniciativas como essa (do instituto) seja melhor no Brasil?
    Há muitas mudanças a fazer na estrutura, principalmente federal, e no trâmite. A entrada de equipamentos, insumos e animais é muito complicada. Parece feita para não funcionar, tal o emaranhado de lei e a burocracia kafkiana. Nossas leis são de 30 anos atrás. São para animais domésticos, para levar cachorro na viagem. Não atendem o transporte de animais de pesquisa. Os prazos são longos. Isso explica por que coisas dessa magnitude em geral não vingam no País. Todos os dias temos razões para desistir, mas não desistimos. O resultado é impressionante, principalmente ver crianças decolando para entender a ciência.

    De onde vieram os recursos?
    Nossos recursos foram 70% privados até aqui. E eles têm um impacto que não é apenas científico, mas também social. Precisamos de mais leis que favoreçam o investimento privado em pesquisa. No mundo atual, as empresas que se destacam são aquelas que investem de 1% a 5% de seu faturamento em inovação, em pesquisa. Assim como existem leis de incentivo à cultura e ao esporte, deveríamos ter uma para a ciência. E menos burocracia. Os fundos setoriais são insuficientes.

    Escolher Natal para sair do “eixo” Rio-São Paulo e estar num lugar atraente para pesquisadores estrangeiros foi acertado?
    Foi a escolha correta, sem dúvida. Sempre quisemos descentralizar a ciência no Brasil, sair do Sudeste. Por isso, temos vontade de levar a experiência de Natal para outros Estados do Norte e do Nordeste. Queremos enraizar e emancipar esse projeto.

    Por que fez questão de incluir projetos educacionais?
    Sempre fui a favor de um modo diferente de fazer ciência, não dissociada da realidade, não abstrata, mais compreensível, mostrando seu impacto na vida das pessoas. E nada melhor do que o método científico para tornar a educação mais agradável, em vez de uma coleção de fatos não correlacionados. A criançada ali registra o ambiente onde vive e o País de uma maneira que não é enfadonha, que é divertida, até porque é feita em grupos.

    Entre as linhas de pesquisa do instituto, há seu trabalho com interface homem-máquina. Que contribuições os laboratórios de Natal podem trazer, sem ser coadjuvante de Duke, Lausanne ou do Sírio?
    Muitas. Ele vai colaborar de igual para igual com a rede. Em certas áreas ele estará à frente dos outros, num papel de liderança, não à margem. Descobertas já estão sendo feitas ali. Um centro de primatas como o que vamos inaugurar daqui a dois meses é raro mesmo nos EUA.

    O sr. está escrevendo um livro?
    Estou escrevendo três livros. Um sobre minha teoria; chegou a hora de fazer a síntese dos meus 20 anos de pesquisa. O outro é para divulgá-la para um público amplo. E o terceiro é relato do empreendimento de Natal.
    Como o sr. vê descrições do seu trabalho como “manipulação de robôs pela força do pensamento”?
    O problema é que o pensamento não tem força; não dá para medi-la (risos). Minha visão é muito diferente. O que consegui foi mostrar que era possível decodificar em outra ordem de grandeza os sinais cerebrais, as atividades elétricas, e daí veio o trabalho com as interfaces. Meus colegas desconfiavam, mas hoje estão reconhecendo que é possível. Já podemos pensar numa terapia com interfaces para pacientes neurológicos. Estamos perto.

    Qual é sua visão da consciência, por exemplo, em comparação com a de um Gerald Edelman (biólogo vencedor do Nobel de 1972)?
    Ambos acreditamos que nos últimos 20 anos a neurociência deu um salto com a tecnologia de imagens e os estudos evolucionistas. Mas ele tem uma visão reducionista. Mostrei que o cérebro funciona por populações neurais, não por regiões anatômicas. Ele estudou os neurônios isolados. Trabalhou com poucos dados, então não consegue se desvencilhar dos princípios fisiológicos. É uma visão darwinista, mas não de modo complexo. Para mim, o cérebro tem papel de liderança em relação ao corpo.
    E a de Antonio Damásio (neurologista português)?
    O Damásio é um excelente pesquisador, mas acho sua visão tradicional. Ele está preso ao dogma do século 20, a teoria da localização (funções cerebrais executadas em regiões específicas). O cérebro é muito mais participativo, plástico, com funções mais distribuídas. A distinção de áreas anatômicas não é tão nítida.

    domingo, 23 de novembro de 2008

    Roda Viva: Miguel Nicolelis

    01/09


    02/09

    06/09

    04/09

    05/09

    06/09

    07/09

    08/09

    09/09

    sábado, 15 de novembro de 2008

    Mind Control Monkey Moves Robot in Japan

    Resumo da Pesquisa de Miguel Nicolelis

    A CIÊNCIA PODE SER UM AGENTE DE TRANSFORMAÇÃO


    ENTREVISTA: MIGUEL NICOLELIS
    CAROS AMIGOS - MAIO/2008




    Thiago Domenici Vou fazer uma provocação: o
    senhor acredita em Deus?
    Não. O único divino que eu acredito é o Ademir da Guia [craque do Palmeiras nos anos 1960-70, apelidado de Divino pela crônica esportiva]. Aliás, tenho uma ótima relação com Deus: ele não acredita em mim e eu não acredito nele.

    Thiago Domenici Posto isso, vamos à infância.
    Foi excelente. Nasci na Bela Vista, na parte do Bixiga, mas a família mudou pra Moema e cresci lá. Nossa grande diversão era ver avião pousar em Congonhas.

    Marcos Zibordi Você é filho único?
    Tenho uma irmã. Tem um monte de carcamano na família de descendência italiana e grega. Meu pai Angelo Brasil Nicolelis é juiz aposentado, e minha mãe é escritora, Giselda Laporta Nicolelis, na literatura infantil é conhecida, razão pela qual fui embora do Brasil, senão seria o filho da Giselda o resto da vida.

    Marcos Zibordi Estudou em colégio público?
    Estudei no primeiro colégio de Moema. Depois, no Bandeirantes. 

    João de Barros O que te chamou atenção na biologia?
    No Bandeirantes comecei a tomar contato com essa visão humanista da biologia, entender
    a razão pela qual a gente é o que é, de onde a gente veio, tomar contato com a teoria da evolução, perceber que existe uma beleza – é pena que a palavra milagre já foi ocupada por outra “empresa”, mas é fascinante poder descobrir a riqueza e complexidade das coisas e o fato de ser inteligível e explicável. E o Bandeirantes tinha laboratórios raros. Você podia fazer alguma coisa que não estava no script. Aí percebi que ciência é o melhor emprego que existe, pagam você para ser moleque, experimentar, se divertir.

    Mylton Severiano Na infância a questão de Deus não existia?
    A família era muito religiosa, mas minha avó, grande inspiradora intelectual, dona Ligia Maria, era uma agnóstica em dúvida. 

    João de Barros Você fez primeira comunhão?
    Foi um trauma, foi no dia que o Palmeiras ia disputar o título com o São Paulo, em 1971, e foi roubado no gol do Leivinha, de cabeça: o Armando Marques anulou o gol. Era pra eu ir ao jogo, e minha mãe entre Deus e o Palmeiras: aí a ruptura foi clara com Deus. Se existe o ser que criou tudo, não vai ser benevolente pra deixar um moleque de 10 anos assistir o jogo do Palmeiras?

    Mylton Severiano Quando você foi pro curso superior?
    Entrei na faculdade para ser neurocirurgião e descobri que era mais ou menos trabalhar com encanamento o resto da vida – coisa fundamental, quando você quiser um neurocirurgião, o cara tem que ser bom, mas não era pra mim. Percebi que era possível fazer o que fazia no Bandeirantes profissionalmente.

    Vinícius Souto Algum professor teve papel importante?
    Vários, mas o que me inspirou é o fundador da neurociência brasileira, Cesar Timo-Iaria, um cientista humanista. 

    João de Barros Como se dá esse confronto, do cientista humanista com o “de resultado”?
    A ciência hoje é um grande negócio, atividade extremamente competitiva. Mas ainda mantém esse fascínio de dar a chance de perseguir o desconhecido, no meu caso tentar entender o que o cérebro faz, que é a grande fronteira da biologia hoje.

    Marcos Zibordi Era esse confronto que você tinha na faculdade?
    A universidade brasileira ainda vive da hierarquia, da hipótese de que quem está à frente da classe sabe mais. E ainda não permite um canal de desafio. O que aprendi muito nos EUA é que se você está dando uma aula, e o menino do colegial que está na universidade fala que você está falando besteira, “não é assim, é x, y, z”, você tem que parar e falar “tem razão”. Esse canal de comunicação bilateral não existia aqui. Ainda vivemos do saber da autoridade.

    Mylton Severiano É cultural?
    Cultural, o “professor-doutor”. Pelo título assume-se que você é autoridade naquela área, mas nem sempre era verdade. Muitos chegaram a posições de altíssimo destaque.

    Mylton Severiano Aquele que acabou com Manguinhos: Rocha Lagoa?
    Não conheço. Manguinhos é a resistência da ciência nacional. Maravilhosa. A gente não conhece o patrimônio científico do Brasil.

    Thiago Domenici Como o quê?
    Pouca gente conhece o Carlos Chagas e o trabalho dele é um dos poucos exemplos da história da infectologia onde o cara descobriu a doença, o agente e o vetor. É raro encontrar um pesquisador que conseguiu ir atrás de todos os passos de uma doença que na América do Sul e na África é importante.

    Camila Martins Não se reconhece o brasileiro por quê?
    Não temos a cultura da ação científica como patrimônio do país. Todo o mundo conhece Machado de Assis, artistas, jogadores, econo mistas. Não faz parte do nosso ethos enquanto cultura brasileira delinear o que a inteligência criou na ciência. O Santos Dumont é o maior cientista que o Brasil já criou, o maior neurocientista o maior inventor. E nunca foi para a escola, então foi quase que repudiado nos livros da história da ciência brasileira porque nunca teve diploma.

    Mylton Severiano Você falou Santos Dumont neurocientista?
    Sim, um experimento que fiz recentemente demonstrou que ele estava certo. Fiz sem querer, ele fez de propósito. Ele tinha um problema claro. Tinha vários controles que precisava comandar, a inclinação da asa, ele inventou estabilizadores vertical, horizontal, o flape. Só que não existia botão e luzinha, pra dizer “isso aqui não está funcionando, puxe esta alavanca”. Só existia polia, corda e alavanca. Mas o número de alavancas era grande para ele dar conta. Então, em certos aviões dele, ele amarrava as cordas no terno, de maneira que, se mexesse pedaços do corpo, corrigia erros de elevação. Percebeu que incorporava o avião. Percebeu algo que nós demonstramos três anos atrás.

    Mylton Severiano Isso tem a ver com o McLuhan, que fala da extensão do corpo?
    Exato. Nós demonstramos que o cérebro assimila as ferramentas que usamos diariamente.  Sempre uso o exemplo do jogador de tênis. Para o cérebro a raquete, depois de
    anos de prática, deixa de ser uma ferramenta para ser uma extensão do braço. Então para os mapas que temos dentro do cérebro, que definem quem nós somos, aquele braço agora tem dois metros de comprimento e termina num oval. O Santos Dumont percebe isso  empiricamente. O pessoal olhava e via um cara se contorcendo, achava que ele tava tendo uma crise epilética, mas na realidade ele estava usando o corpo – o avião era um pedaço dele. Escrevi uma vez uma pequena história dele, “o homem que virou avião”.

    Roberto Manera O cérebro dele substituiria o radar de navegação?
    O cérebro dele era um giroscópio. Ele tinha uma noção de espaço rara. Existem áreas do nosso cérebro que codificam onde estamos. Uma delas: o hipocampo, que, a cada momento que a gente está navegando, mapeia onde a gente está. Para onde está se dirigindo, quais as coordenadas. Esse é meu grande debate filosófico com meus colegas hoje. Todo o mundo pensa o cérebro como um órgão que interpreta o mundo. Acredito que o cérebro cria o modelo do mundo, e ele só confirma ou nega esse modelo continuamente. Essas são duas escolas que estão batendo de frente. Como bom palmeirense gosto de dizer que estamos começando a ganhar o jogo. Levou 100 anos para as pessoas acreditarem que o cérebro tem um ponto de vista interno, dele, próprio, criado ao longo da nossa vida. Cada um de nós cria esse modelo do mundo.

    Marcos Zibordi Seria mais forte que predisposição genética? 
    A genética nos dá um arcabouço, o começo de cada um de nós é mais ou menos o mesmo, o cérebro define quem cada um de nós é. Acredito que ele gera um modelo, tanto que, se você perde uma mão, o braço, durante muito tempo quase 90 por cento dos pacientes desenvolve um fenômeno chamado “membro fantasma”, pior do que as pessoas comentam, porque 80 por cento têm o membro doloroso – sentem dor numa parte que não existe mais. 

    Thiago Domenici: Dentro dessa briga de escolas, o que mostra que vocês estão ganhando o jogo?
    Os estudos com robôs. Começamos em 2003 e temos publicado trabalhos que confirmam os experimentos originais e agora outras pessoas reproduziram nosso achado. Demonstramos que, se você puser o cérebro em controle de um membro artificial, uma prótese mecânica, mesmo a 4 mil quilômetros de distância, mas se conseguir fazer aquele braço se mexer em 200 milissegundos, que é o tempo que leva para o cérebro mexer o braço biológico, e se o braço mecânico fizer o movimento, o que o cérebro quiser que ele faça, o cérebro assimila aquele braço como uma parte do corpo. Então mostramos as células do cérebro se dividindo fisiologicamente, funcionalmente, a sua fidelidade funcional se dividindo entre os dois braços
    fisiológicos e o novo braço robótico como se o animal tivesse ganhado um terceiro braço.

    Mylton Severiano Isso foi feito com animais.
    Foi feito com macacos e agora temos evidências que acontece em seres humanos. 

    Marcos Zibordi Vocês não chegaram a testar  em humanos?
    Não, nós publicamos um trabalho em 2004 com parkinsonianos que estavam sendo operados e criamos um eletrodo; quando você está operando o cérebro de alguém, é treinado pelo ouvido, você ouve o cérebro, as células, que se comunicam com eletricidade; mas cada célula produz um som peculiar, cada região do cérebro tem um som. Pouca gente sabe. A gente aprende a saber onde “está” no cérebro, não só pelas coordenadas tridimensionais, mas pelo som. Se tiver um som de pipoca estalando, eu talvez te diga que lugar do cérebro é, porque passei 20 ano ouvindo.

    Michaella Pivetti O cérebro tem visão de mundo?
    Minha teoria é que, ao longo do desenvolvimento, você vai mapeando a estatística do mundo ao redor, sua interação com o mundo; essa estatística vai sendo incorporada no cérebro de tal maneira que cria um modelo de realidade. Por exemplo, você tem um paciente esquizofrênico e certas coisas acontecem no cérebro, esse modelo de realidade sai de foco. O paciente tem alucinações, pensa que o estão perseguindo, ouve sons. Se você examinar o cérebro dele, vai ver que o córtex auditivo, por exemplo, está sendo ativado sem ter nenhum som. Está vindo de dentro dele. Estou desenvolvendo essa teoria, explicando quais  princípios regem a criação de um modelo interno do cérebro sobre o mundo. É como olhar o mundo do ponto de vista do cérebro, esse é nosso embate. Por exemplo, você quer entender meu cérebro. O que faz? Manda um sinal, visual, tátil, auditivo, meu cérebro interpreta, você mede aqui de fora como é que reagiu, mas esse é o seu ponto de vista, de quem está  tentando entender aqui de fora como funciona. Se você pegar um animal ou ser humano  anestesiado e fizer o que falei, o cérebro te dá uma resposta – o que levou um monte de gente a pensar que o cérebro é só um decodificador de sinais. Foi a doutrina durante o século 20 do sistema nervoso: ele decompõe o sinal e analisa em detalhe a grandeza física que recebeu.   Quando a gente começou a olhar em cérebros despertos em animais, e agora em cérebros humanos, começou a ver que o cérebro já está computando um monte de coisa antes mesmo de você mandar aquele sinal. Ele já criou uma expectativa do que você vai fazer, ou do que vai acontecer daqui a cem milissegundos, duzentos. E na minha visão ele está só, basicamente, testando essa hipótese. Se é de acordo com o modelo, reage de maneira tranqüila. Se não tem nada a ver com o que ele estava esperando, gera um sinal de alerta. O doutor César trabalhou nisso, um sinal de alerta que fala “opa, tenho que atualizar o modelo porque a minha hipótese não foi...”

    Mylton Severiano Mais explicadamente, vamos dizer, eu falo “Fulano, me passa...” e ele me dá os óculos, mas não eram os óculos...
    É que 70 milhões de vezes antes você já pediu seus óculos. O cérebro é um agente ativo, não é um decodificador passivo, ele não é um computador. É um criador da realidade, da sua realidade. Você pode ver o Palmeiras trucidar o São Paulo e achar que foi uma injustiça, eu vou achar que foi...

    Marcos Zibordi Deus?
    Exato. É que nem a CPI da Tapioca, o cara compra uma tapioca e os caras acham que ele anexou a Bolívia. Criam uma celeuma. 

    Marcos Zibordi O funcionamento é o tempo todo?
    Mesmo quando você está dormindo, sonhando, uma fase importantíssima. Nós temos vários trabalhos, outros grupos, sugerindo que suas memórias estão sendo consolidadas durante o sonho, sendo reprogramadas. Mesmo no sono o cérebro está processando informação.

    Michaella Pivetti Uma noite sem dormir perdese memória?
    Nós estudamos hoje se adquirir informação antes de dormir é melhor do que adquirir e não dormir. As crianças vão na escola às seis, sete da manhã: quem disse que esse é o melhor  horário para se aprender? Uma série de estudos diz que para alguns é o pior horário. 

    Mylton Severiano O Brizola falava que precisa cuidar do cérebro da criança até os seis anos, depois disso “queima o computador”. É mesmo?
    É um período crítico. Por isso na nossa escola, acho que é uma das primeiras do mundo, o currículo começa intra-útero. Estamos trazendo as grávidas para a escola, em Natal, em Macaíba. Um número razoável é adolescente e a criança quando nasce já vai entrar no currículo, vai ser vista como um ser integral. Um aprendizado fundamental para se criar um ser crítico, consciente, que consiga exercer seu potencial mental na plenitude, começa intra-útero. 

    Léo Arcoverde E porque você foi para os Estados Unidos?
    Fui para os EUA em 1989. Terminei meu doutorado e queria fazer algo que aqui não existia, e não existia lá. Mas um cara, uma coincidência, tinha posto anúncio na revista Science procurando uma pessoa para fazer exatamente o que eu queria: registrar grandes populações de neurônios. Os astrônomos têm uma analogia disso. A astronomia nasceu com um telescópio, o cara olhava para uma estrela. Nos anos 1960, se percebeu que você podia estudar o universo não só com luz no espectro visível, mas galáxias, estrelas, medindo fontes de ondas de rádio do universo. Estava a ler sobre isso e perguntei para o Cesar por que a gente não podia fazer isso em neurociência.  Em vez de olhar um neurônio de cada vez, criar uma matriz, e ver centenas de eletrodos simultaneamente. O Cesar falou “aqui não tem jeito, mas deve ter algum doido pensando nisso nos Estados Unidos”. Lendo uma Science, onde põem anúncios para recrutar cientistas,  tinha um cara na Filadélfia pedindo exatamente o que eu tinha, a idéia. Só que era falso, ele tinha posto porque queria dar o greencard [visto de permanência] para um coreano que trabalhava no laboratório dele, criou o anúncio mais maluco, e o único cara que “apareceu” era o coreano. Mas eu mandei uma carta de vinte páginas, explicando meu plano, e acabei com a alegria do coreano. Cheguei no escritório do John Chapin, meu amigo até hoje, ele disse “puxa, nunca imaginei que alguém ia mandar um plano desse, na realidade esse anúncio era furado”. E eu fui pra Filadélfia.

    Mylton Severiano Mas por que não era possível examinar grupos de neurônios? Tecnologicamente existiam problemas, e resistência conceitual da comunidade. 

    Mylton Severiano Essa recusa não é ideológica?
    Não, era do medo do diferente. A ciência também é conservadora. 

    Mylton Severiano Então é ideológico, não?
    De certa maneira, sim. A resposta do cara era “será que precisamos de tecnologia da era espacial para estudar o cérebro?”, e a nossa resposta foi “sim”, e o cara ficou uma fera, não ganhamos um tostão.

    João de Barros Por que se batia tanto nessa de estudar um neurônio só?
    Porque neurônio é considerado – outra coisa que está mudando –classicamente como a unidade funcional do cérebro. No fígado é o hepatócito, no rim é o nefron, no osso é o osteócito, a teoria celular...

    Mylton Severiano Uma visão burocrática?
    Era um dogma, acentuado porque o pai da neurociência, um espanhol, um gênio, Santiago Ramón y Cajal, Prêmio Nobel em 1906 [fisiologia e medicina], demonstrou que o cérebro é formado por células, separadas por um espaço muito restrito, não como o coração, onde as células estão interligadas eletrotonicamente. Isso foi um troço. Ele criou a Teoria Celular do Cérebro. Só que nos últimos dez, quinze anos, a gente tem visto que uma célula no cérebro é que nem um dado que você joga. Num dado dá para ter de um até seis, a célula é um ou zero: ou dispara ou não dispara. Mas ela é um elemento estatístico. Um neurônio não define nenhum comportamento por si só. O cérebro é uma democracia, precisa de um grande número de votos estatísticos – são meio ruidosos – pra criar um comportamento  determinístico. Isso durante muito tempo foi difícil de ser assimilado na comunidade neurocientífica. Tenho batido de frente há quase quinze anos sugerindo que a unidade funcional  do cérebro não é o neurônio, mas uma população de neurônios, que num momento vota por uma decisão, e depois eles se dissociam.

    Mylton Severiano São 12 bilhões mesmo?
    Na estimativa mais moderna são 100 bilhões, mas é mais. Tem tanto neurônio no cérebro  como estrelas no universo. É um universo. Que vem do cérebro mesmo, é a poeira da estrela que gerou ele. O universo é um ovo, começa com o big bang, aí todos os átomos se espalharam e calhou de no estádio do Parque Antártica se convergir numa coisa chamada  cérebro. Um ovo, fechou o ciclo. Demorou um pouquinho, não? 15 bilhões de anos. Ele provavelmente obedece a princípios próximos. Esse reconciliar nunca foi feito, as pazes entre de onde a gente veio e pra onde vai, enquanto espécie, nunca se fizeram. E agora estamos começando a olhar pro cérebro de maneira mais holística, mais completa, e não só com uma célula, outra célula... 

    Marcos Zibordi Qual foi o avanço que nos permitiu dar esse salto?
    O grande avanço foi a criação dessas matrizes de eletrodos num laboratório do John Chapin, filamentos do diâmetro de fio de cabelo, flexíveis, que você consegue inserir no cérebro, sem que danifique. Eles ficam lá, por meses, a ponta fica do lado de várias células, e cada ponta registra as correntes elétricas que vêm de cada uma dessas células.

    Marcos Zibordi Dá pra pôr?
    Eu já pus 760 na cabeça de um macaco. Aí é o lado neurocirúrgico, é fácil, você abre, mas as aberturas são pequenas craniotomias e só entram dois milímetros no cérebro. Isso devo muito à faculdade: a destreza manual de fazer isso é rara nas faculdades americanas, é um  treinamento motor muito bom aqui. O segundo foi: “bom, você tem um terabyte a cada meia hora, como você faz?” Como pôr isso em matrizes de computadores? Tem um supercomputador analisando o cérebro, os sinais que vêm, e aí como você analisa esses dados? Não havia ferramentas matemáticas para olhar uma matriz de dados elétricos do cérebro.

    Thiago Domenici Vocês criaram um software?
    É, adaptamos métodos estatísticos. Por quê? Tinha um prêmio Nobel, Simon Davi Sil-ber, que dizia que se ele precisava de estatística para ver um fenômeno neurofisiológico, o fenômeno não existia. Ele simplesmente não acreditava em estatística. É uma formação muito dogmática do ponto de vista biológico puro – ou é branco ou é preto. E o que a gente propôs foi: vamos olhar o cérebro como uma máquina estatística, e não como a gente olhou durante cem anos. E começou a dar resultado, a gente começou a prever em tempos reais o que o ratinho estava pensando, coisa simples. E a boa idéia foi essa. Dez anos atrás estávamos eu e o John na periferia da Filadélfia, comendo um sanduíche típico, Cheese Steak, num bar de caminhoneiro,  falando de cérebro de rato, os caras olhando para nós, e tivemos a idéia de ligar o cérebro a um robô. Provamos do ponto de vista quantitativo que, se a nossa teoria tinha algum mérito, aquele bicho ia conseguir pensar, nós íamos conseguir ler o pensamento e fazer um robô se mexer. Quer dizer, estávamos pegando um sinal do jeito que é produzido e criando um modelo que tentava imitar o que o cérebro faz, para fazer o movimento de um braço artificial ser o mesmo do braço biológico. Foi aí que nós criamos essa interface cérebro-máquina. 

    Camila Martins Isso também é inteligência artificial?
    A inteligência artificial é classicamente uma tentativa de reproduzir as decisões humanas num nível mais cognitivo, um nível mais alto. Nós estamos indo lá embaixo no sinal elétrico  mesmo, e tentando gerar coisas que gerem movimento, ou como nós acabamos de fazer, mas não publicamos ainda: mandar mensagens de volta para o cérebro e ver se o cérebro entende, conversar com ele. A minha macaca favorita é a Aurora; eu dizia que estamos começando a conversar com a Aurora, mas não verbalmente, nós estávamos mandando um sinal pro cérebro e esperando que ela respondesse se entendeu ou não o que a gente quis dizer. Recentemente dois macacos responderam que entenderam comportamentalmente.

    Thiago Domenici Mas como?
    O macaco está no escuro, tem duas portas; uma tem uma fruta, outra porta não tem nada. Nós mandamos a mensagem “a fruta está na porta direita”, ele foi lá e abriu; a outra, “a fruta
    está na porta esquerda”, foi lá, a fruta não está, ele ficou quieto. Começamos a perceber que a mensagem estava sendo decifrada. 

    Roberto Manera Mas em que linguagem?
    Eletricidade. É um padrão de pulsos elétricos que variam no tempo e no espaço. Um padrão  chamado espaço temporal. Roberto Manera Estão conseguindo provar que meu cachorro, por exemplo, é mais inteligente que o Maluf, como acho que é? Esse experimento eu não realizei. O cachorro tem um grau de inteligência e de consciência. A gente não sabe qual é o horizonte dessa consciência, mas ele provavelmente tem mais senso de humanidade do que certas figuras. 

    Roberto Manera À luz da neurociência moderna Freud descobriu ou inventou o inconsciente?
    Tenho dúvidas, mas ele formulou uma hipótese de diferentes estados de consciência, é  chocante, até então o que se debatia não era a consciência “consciente”, era a verbal e a lógica. Ele criou uma visão da mente com outros estados de consciência não-verbais e não facilmente acessíveis. Uma hipótese que ainda está em aberto. Se Freud aparecesse hoje numa convenção, seria um “neurocientista computacional”, um formulador de teorias ou de hipóteses que gente como eu, experimentalista, ia levantar e falar “muito bonito, mas cadê o dado?”

    Thiago Domenici O que você está pesquisando pressupõe que quadriplégicos possam voltar a ter movimentos?
    A hipótese é: o problema do quadriplégico é que o cérebro continua produzindo comandos motores, só que o sinal não consegue chegar nos músculos porque houve uma interrupção das vias de comunicação. O que fizemos foi demonstrar o princípio de que se pode criar um desvio, pegar o sinal direto do cérebro, usar um chip para decodificar e mandar para um braço mecânico, que teria como finalidade reproduzir a intenção motora da pessoa – como o braço faria se pudesse se mexer. Num primeiro momento, a gente usa uma prótese mecânica para demonstrar o conceito e estamos chegando muito fácil numa demonstração clínica convincente. Ao mesmo tempo descobrimos que, em vez de usar a prótese, podemos revestir o corpo com algo que a gente chama de exoesqueleto: um robô que se veste, com motores, sensores, e fazer o cérebro controlar esse exoesqueleto; daí você vai “carregar” o corpo. É como criar um besouro. O besouro é uma carapaça que se mexe com um corpo todo molenga dentro. Vou ter um corpo paralisado, sendo carregado por esse exoesqueleto que será controlado diretamente pelo cérebro. Não só permitiria que a pessoa retomasse os movimentos, mas forneceria uma terapia para as partes paralisadas, osso, massa muscular, porque você vai gerar movimento e tentar reverter um pouco da atonia e da atrofia. E, a longo prazo, se funcionar, o passo final é  devolver esses sinais que vêm do cérebro para a maquinaria biológica sem o exoesqueleto, aí é difícil, no momento é complicado.  Inventamos uma prótese de locomoção onde o cérebro do macaco na Carolina do Norte comandou um robô no Japão em tempo real. O robô andou de acordo com o comando que veio do cérebro do macaco e mandou de volta os sinais das pernas andando.

    Mylton Severiano Quer dizer que isso que vocês estão fazendo já está obsoleto?
    Na nossa cabeça já está. Mas isso levou dez anos. E nos próximos dez vamos demonstrar os dois primeiros: fazer gente recobrar a mobilidade com a prótese ou com o exoesqueleto. 
    Mas a ciência é muito não-linear. Sempre aparece um louco que tem uma idéia e acelera.

    Léo Arcoverde Quando surgiu a história do Instituto?
    Sempre tive a idéia de voltar e fazer alguma coisa no Brasil. Era preciso demonstrar qu alguém podia fazer ciência fora e trazer de volta. Comecei a ir para o Nordeste. Tinha sensação que até o impacto era necessário para demonstrar para o Brasil quão fundamental a
    ciência é para o desenvolvimento não só econômico, mas principalmente educacional e social
    – os exemplos da Coréia, Taiwan: o que mudou esses países foi o redirecionamento do processo educacional. Era preciso ir para um lugar onde cientista nenhum iria e provar que o talento científico brasileiro existe em qualquer lugar, no Capão Redondo como em Macaíba. O que não existe é oportunidade para esse talento aflorar. Quer dizer, você não oferece ao potencial humano brasileiro nem o método nem as oportunidades para que o método seja aplicado. Para que as pessoas possam perseguir sua imaginação, porque ciência é isso, é ter uma idéia, achar que vai funcionar e ir atrás. Daí que você vê quem é cientista – não é diploma, não é passar na banca, não é ter título. É o cara que tem uma idéia criativa, aplica métodos rigorosos para testar e que persiste. Noventa por cento da ciência é persistência.

    Vinícius Souto Como o pessoal de fora enxerga sua experiência no Brasil?
    O pessoal está atônito. Quando apresentei o projeto de Natal em Davos, na Suíça, em janeiro, foi curioso. Estava do lado de colunistas, um deles famoso aqui, ouvindo gente falar do Brasil o tempo inteiro, ia no computador na manhã seguinte, abria nos jornais de São Paulo e ninguém falava nada. Vi um economista argentino falar bem do Brasil. Chorando, emocionado, “é um exemplo, é um país que está dando um show”. No dia seguinte, não tinha uma palavra. No meu dia, vou falar sobre um projeto educacional, mostrei: “A ciência não é só para ser feita em universidade, ficar em prédio fechado, é para se abrir para o mundo.” Tinha acabado de sair uma carta que assinei com o presidente, primeira vez que um presidente de qualquer país assinou um editorial na Scientific American. 

    Mylton Severiano Quem? O Lula?
    É. Não saiu em lugar nenhum. Estava na capa da maior revista de ciência do mundo, o presidente, o ministro da Educação, se comprometendo a levar o currículo de educação científica infanto-juvenil desenvolvido em Natal para 1 milhão de crianças brasileiras. Mostrei as crianças montando robô, usando telescópio, medindo lua de Júpiter.

    Mylton Severiano Lá em Natal?
    Em Macaíba, na periferia de Natal. Foi um choque. Mas só fora daqui saiu nos jornais, saiu na Scientific American, na Science, na Nature, nas grandes revistas do mundo.

    Roberto Manera Qual é a parte da grande imprensa nisso?
    Ah, omissão. Cheguei à conclusão que hoje no Brasil é difícil falar bem do Brasil. Existe uma cultura de se confundir o país com quem está no governo. E a gente não pode contar boas notícias. É uma coisa meio assustadora, não consigo entender.

    Mylton Severiano Porque o presidente não é doutor?
    Pode ser. Mas acho que o buraco é mais embaixo: não podia dar certo. O governo dele tinha de ser o pior da história do Brasil. E se você analisar os fatos friamente e objetivamente,  não é. Se você passar duas semanas no interior do Rio Grande do Norte, da Paraíba, é outro Brasil. A gente respira aquele país que, quando eu era criança, me diziam que nunca seria possível se fazer. [Nesse momento Nicolelis chora] E é chocante, você só consegue falar sobre isso fora daqui. O Brasil, de certa maneira, carrega hoje a responsabilidade de ser uma das poucas boas esperanças no mundo. De preservar seu  ambiente, construir um país honesto, que cresça não à custa de outro, mas à custa do seu próprio trabalho, um país que tem uma democracia explodindo, não? Eu coloquei na minha porta na Universidade de Duke: 95 milhões de votos contados em quatro horas. Qualquer semelhança é pura coincidência. Eu me tornei mais brasileiro vivendo fora daqui. E acho inconcebível que nossas crianças cresçam sem apreciar a diferença entre patriotismo barato e verdadeiro amor pelo Brasil. Têm direito ao acesso à informação legítima, honesta e limpa. Para saber que país é, quais são os problemas, mas quais são as maravilhas do Brasil... [chora novamente]. Tem duas piadas que me deixam possesso. Uma é quando alguém fala, aqui, que “isto é coisa de primeiro mundo”. Que primeiro mundo? E a segunda é que “Deus criou esse maravilhoso país, mas deixa ver o povinho que vou pôr lá”. É o ranço do coronelismo. É inserir no genoma nacional o complexo de inferioridade. O Santos Dumont não pensou que não era do primeiro mundo quando voou, não pensou no “povinho”, ele foi e fez. E acho que o que nós não sabemos é que existem milhões de outros Brasis que estão se fazendo está lá em Resende, em Lages, no Seridó, no sertão da Paraíba, em Soares, em lugares que a gente nem considera como parte da gente. E aqui nós não apreciamos isso.

    Thiago Domenici Quando você mostrou o projeto ao Lula?
    Foi genial. Estávamos no meu escritório, na minha casa, assistindo televisão, na Carolina do Norte. Vejo o discurso de vitória de um cara que conheci rapidamente, que veio da miséria e virou presidente do Brasil, e está anunciando que quer construir outro país. Virei pro Sidarta, cientista meu amigo: “É agora.”  Escrevemos, fizemos contato. Em 2002. Vim em março de 2003 e fui me encontrar com ele em 2004. Declarei a intenção de criar o projeto no lugar em que cientista nenhum iria, e se funcionasse em Macaíba iria funcionar em qualquer lugar. Trouxe quarenta neurocientistas do mundo inteiro para Natal, para o simpósio que inaugurou a idéia, em fevereiro de 2004. Recebi um convite para ir ver o presidente. Foi emocionante, tinha dado carona para ele uma vez, no sindicato dos médicos, quer dizer, um cara que contei piada do Palmeiras e do Corinthians era presidente da República. E ele mandou todo o mundo sair da sala, me deu um abraço e disse: “Vai em frente que eu estou aqui.” [Chora novamente.]  E nós fomos em frente.

    Mylton Severiano Governo federal, estadual e municipal, você tem apoio?
    O maior apoio foi do governo federal, mas o mais relevante é que a gente não só conseguiu construir isso, como conseguimos pegar mil crianças da rede pública, de escolas que as pessoas não davam esperança alguma, colocar em um ambiente de laboratório, de liberdade, de criatividade e mostrar para elas que o céu era o limite. E quando vim falar com certas pessoas aqui em São Paulo, falaram: “Não vai sair nada.”

    Thiago Domenici Pessoas do governo? 
    Não, cientistas: “Você está louco, não tem massa crítica, não vai sair do lugar”, e hoje você vê criança que antes queria ser jogador de futebol dizer  que quer ser químico. Estão montando robô, outro programando chip aos 12 anos. 

    Vinícius Souto Quais as principais características?
    O projeto tem um centro de pesquisa onde começamos a trazer brasileiros que estavam fora, neurocientistas, como o Sidarta. Jovens que estavam fora ou pelo Brasil sem conseguir  penetrar no sistema acadêmico público, levamos pra lá e o núcleo Coração, um centro de pesquisa ligado com centros de ponta do mundo inteiro. Em volta criamos o projeto  educacional, e criamos um centro de saúde de atendimento à mulher e à criança, para gestação de alto risco; câncer da mulher; e problemas de neuropediatria. Agora estamos construindo um Campus do Cérebro, para 5 mil crianças, tempo integral, é essa que vai começar desde a gravidez, o Instituto propriamente dito, e vamos começar ações de integração com a comunidade. Queremos criar um pólo de desenvolvimento industrial, tecnológico,  biotecnologia, porque o semi-árido é o único bioma naturalmente brasileiro, ninguém tem algo como a caatinga, e nós não devotamos nem em prosa, nem em verso, nem em orçamento o suficiente para estudar isso. Precisa ir lá, tirar foto, conversar com o povo, isso ninguém quer fazer porque dá trabalho.

    Marcos Zibordi Quanto custa uma coisa dessa?
    Esse projeto custa muito dinheiro. Até agora, com tudo que arrecadamos fora, setenta por cento é privado: doações, contratos de pesquisa, a Duke University me deu um contrato,doou equipamento, dinheiro. Está mudando o perfil do lugar. O Campus do Cérebro vai custar 42 milhões de reais. Só que os dinheiros não estão todos aqui, mas estão empenhados. 

    Léo Arcoverde E os educadores?
    Recrutamos professores formados pelas universidades do Nordeste, e fizemos um retreinamento, agora estamos trazendo professores da rede pública a participar dos laboratórios. O primeiro sinal que o projeto estava funcionado é que os professores da rede pública começaram a comentar que estava até criando problema na escola, “seus alunos fazem muita pergunta”... Essas crianças têm perguntas que desafiam gente experimentada. Ensinar é isso, essa troca.

    Mylton Severiano Mas voltando ao Brizola, que falou que se até seis anos não formar o “computador” queima, essa criança tem chance mesmo “queimada”?
    Tem. Existe uma coisa que chama plasticidade cerebral. O exemplo que uso é o Garrincha. Tinha um joelho olhando pro outro, passou fome, teve deformidades ósseas e distúrbios neurológicos, certamente faltou proteína pro cérebro. O controle motor do Garrincha ninguém discute haja vista o beque da União Soviética na Copa de 1958. O ditado “cachorro velho não aprende truque novo” não é verdade. O cérebro consegue, principalmente na primeira infância, se adaptar a condições adversas, os circuitos se rearranjam. Agora, esse primeiro período dos seis anos, ou três, é vital, é o momento onde você tem que ter o aporte nutricional e o educacional.

    Marcos Zibordi Imagino que o Instituto é mais um mundo mágico. 
    Uma menina, quando o presidente foi visitar, ele perguntou: “O que você acha dessa escola?”, a menina “Que escola?”, “Essa aqui”, e a menina “não, isso aqui não é escola não, é parque de diversões”.

    João de Barros Esses pesquisadores já estão estudando?
    Estão estudando modelos de doença de Parkinson, coisas relacionadas à neurofisiologia do sono, o que o cérebro faz quando a gente vai dormir. A codificação neural, como o sistema nervoso codifica informação.  Estudamos o que está na agenda da neurociência mundial. Natal está ligada a vários institutos do mundo. Em julho vamos ter a primeira escola de altos estudos de neurociência do Brasil, 28 neurocientistas do mundo inteiro vão passar de quatro a oito semanas dando aula por teleconferência para todos os alunos de neurociência do Brasil, de pós-graduação, a partir de Natal.

    Marcos Zibordi A comunidade científica criticou sua proposta, como se você estivess e descredibilizando a neurociência brasileira.
    Nunca me preocupei com isso. Sou cria do pai da neurociência brasileira. Seria impossível, a não ser que eu perdesse o lóbulo préfrontal, esquecer de onde vim. Prova maior é que voltei, não precisava voltar. Esse negócio que não tem dinheiro, dinheiro tem, é só  ir atrás e fazer algo que justifique o dinheiro. A única pessoa que levantou questões, quando interpelada para provar, fugiu da rinha. E tudo o que veio a público aqui foi feito de maneira aberta. O governo federal foi simpático à nossa causa? Claro. Por que não poderia ser? 

    Marcos Zibordi Uma das ações do instituto foi patrocinada pela Agência de Projeto
    de Defesa dos Estados Unidos. Por que achei estranho?
    Porque não existe isso no Brasil. As próteses que comecei a criar podem ser uma terapia para pessoas quadriplégicas ou paraplégicas. Com o crescimento do número de veteranos de guerra com lesões na medula espinal por causa da guerra, então o Departamento de Defesa criou uma verba de pesquisa para gerar novas terapias. E estamos conseguindo. Vai ser anunciado um braço robótico para pacientes que perderam membros superiores que vai ser implantado no ombro deles, comandado pelo sistema nervoso com técnicas que a gente fez. E quando assino esse barato está claro e explícito que jamais trabalharia em qualquer linha que não fosse de reabilitação médica.

    Marcos Zibordi Se nós temos tanta dificuldade para patrocinar pesquisa, o que o senhor acha do fato de não se conferir o resultado final? Como funciona fora daqui?
    Se você terminar um projeto de cinco anos e não produzir trabalhos, publicados em grandes revistas e com um selo de aprovação, sua carreira acabou. A seleção natural lá é grande. Que é um dos problemas aqui: se financia tudo. Se falta dinheiro, teria que ter uma
    visão um pouco mais crítica. O que vamos financiar? Qual é nossa visão estratégica de ciência? O que o Brasil precisa? O que queremos desenvolver da inteligência nacional? Ciência é hoje uma questão de soberania nacional, uma questão estratégica da humanidade e uma contribuinte vital para a preservação da democracia no mundo. Porque se não  ajudar a produzir comida, novas formas de energia, de curar doenças, a espécie acaba.  A ciência está no vértice das decisões. O Brasil precisa de uma nova cultura universitária. Tem que abrir as portas das universidades para o Brasil. Precisa de uma nova visão acadêmica. Tudo isso tem que passar por uma discussão, e a sociedade precisa fazer essa discussão munida do conhecimento da informação. A ciência é uma questão estratégica, só que não recebe do ponto de vista político a devida relevância. A questão das células embrionárias não é religiosa, uma questão técnica, também estratégica. 


    Moriti Neto O governo George Bush é ultraconservador. A comunidade científica enfrentou dificuldades?
    Estou há vinte anos nos Estados Unidos: é o período mais difícil e opressor que já passei na América. Você sente que não tem liberdade de manifestar sua opinião. E sinto que o Brasil  caminha seriamente para impor restrições na nos sa vida cotidiana que vêm de uma posição  religiosa dogmática. Nos Estados Unidos é pior, ao ponto de certos professores serem repreendidos por falar em Darwin no departamento de biologia.

    Thiago Domenici Como você encara ser considerado o cientista brasileiro vivo mais importante e um dos vinte mais importantes do mundo, que pode ganhar o Nobel? 
    É difícil comentar isso. O Brasil merecia vários Nobéis, o Carlos Chagas, Santos Dumont podia ter ganhado o de física. Isso não quer dizer que não ficaria feliz se um brasileiro ganhasse o Nobel.

    Vinícius Souto Como você enxerga essas crianças que estudam no instituto daqui alguns anos?
    Sempre falo para eles que são embriões de um exército de sonhadores. A noção de que você pode sonhar alto, como Santos Dumont sonhou. Minha esperança é essa.

    João de Barros Que cientistas brasileiros você admira?
    Tive o privilegio de ver o Mário Schenberg falar. Era brilhante, aquele raciocínio abstrato,  tentar explicar o que é o universo, a matéria. O doutor César, você chegava na aula de  neurociência e estava tocando a abertura de uma ópera qualquer – ele considerava compor uma ópera o exercício mais profundo, uma tempestade elétrica.

    Marcos Zibordi O gol de bicicleta também. 
    Depende de quem faça. Se fosse o Leivinha... A Nature me pediu um dia para escrever.  É aquilo que você espera a tua vida inteira, o editor da Nature telefonar: “dá para você escrever uma revisão pra nós?”. O mundo pára, o filho pode cair da escada, cachorro pode ficar sem comida.

    Mylton Severiano O que é uma revisão?
    É um artigo que não é só baseado em dados que você coletou, mas a sua opinião. Você
    tem uma chance ou duas na vida de uma revista dessas pedir sua impressão. Ele queria que eu explicasse como as teorias do cérebro se inseriam nessa questão que eu sempre falava em meus trabalhos, de libertar o cérebro do corpo para ele controlar à distância um membro artificial. Ele disse: “Você precisa de um parágrafo que resuma toda a dimensão do que o cérebro é capaz de fazer. Daqui uma semana, mande só o primeiro parágrafo, para eu saber se você consegue escrever o troço.” Olha o que fiz: descrevi sob o ponto de vista de uma criança, que era eu, assistindo televisão, o primeiro gol do Pelé contra a Itália na Copa do México em 1970. O  Tostão cobrando o lateral, o Rivelino levantando a bola, a torcida já levantando atrás do gol, porque eles já tinham visto mil vezes quando a bola sobe para a área e “o cara” levanta, não tem jeito! A expressão de dor que tem no filme, de frente para o gol italiano: o Albertozzi torcendo toda a face, porque sabe que não tem jeito. E o Facchetti, um cara grandão, levanta só para cumprir com o dever, porque “o homem” já vinha correndo. Descrevi isso do ponto de vista do cérebro. A coordenação da visão vendo a bola no ar rarefeito da Cidade do México, a torcida já celebrando, a bola entrando e o mundo  explodindo. Eu tinha nove anos e ouvi um troço explodindo lá fora. E para o resto da minha vida gol era uma explosão, porque meu cérebro associou a imagem do gol com o som dos fogos de artifício por toda a cidade. Liguei para o editor: “olha, modifique o que quiser, mas o primeiro parágrafo é inegociável”. Esse editor me manda um emeio assim: “eu lembro desse gol”. O trabalho estava aceito!

    Mylton Severiano O senhor vai repatriar outros cientistas, não? 
    Sim, parte do projeto Natal é repatriar os cérebros. O Brasil tem 11 mil cientistas no exterior.  São trinta anos de gente indo embora. Mas eu não acredito que o voltar ou existir seja necessariamente só físico. Fui fisicamente porque me disseram que não tinha futuro aqui, entendeu? Fui embora, mas o Brasil nunca foi embora de mim. Acho que muita gente que está fora que foi e aprendeu algo, algo genial, que poderia voltar e ajudar o país, o que a gente precisava é falar “volta, vem pra cá! Está na hora de construir o Brasil”