quinta-feira, 13 de novembro de 2008

sidarta ribeiro


“O sonho é uma simulação do futuro. Sempre que tenho uma situação de pressão, presto atenção aos sonhos e tenho boas respostas.” O parágrafo saiu da boca de um dos mais importantes neurocientistas do mundo. Bem — não seria mesmo um dos melhores se fosse um cara comum. A começar pelo nome, tirado do clássico de Herman Hesse. O romance que conta a trajetória de um inquieto brâmane, xará de Sidarta Gautama, o Buda, em busca da iluminação, era um dos favoritos dos pais, um casal de taquígrafos que transcrevia discursos políticos no Congresso, em Brasília. 
Quando se descobre que a principal diversão de Sidarta Tollendal Gomes Ribeiro, 35, é a capoeira, aí é que ele não se encaixa mesmo como um cientista padrão."Capoeira é filosofia de vida: saber cair, ser mandigueiro”, descreve. O candango chegou aos EUA depois do mestrado em biofísica, no Rio de Janeiro, para estudar neurociência na Universidade Rockefeller, em NY. 
Pouco depois, lançou um livro de contos,Entendendo as Coisas (L&PM, 1998), e levou suas mandingas para a Carolina do Norte, em Durham, onde fica a Universidade Duke. Atraiu-o o famoso laboratório dirigido pelo paulistano Miguel Nicolelis, outro cérebro abençoado e expatriado. “Achava que era megalomaníaco até conhecer o Miguel. Ele é o Pelé da ciência brasileira”, elogia. Após publicar vários trabalhos ao lado do camisa 10 — no mais célebre, provaram que a memória é consolidada durante o sono profundo —, Sidarta notou que seguiam direções diversas. Ao amostrar simultaneamente sinais elétricos de centenas de neurônios de ratos, e com os sinais controlar movimentos de braços robóticos, Nicolelis atingiu a pole position da neuroprotética. 
Já o interesse de nosso capoeirista reside no processo de formação do sonho e da memória, foco do doutorado com o também brasileiro Claudio Mello, da Universidade do Oregon. Para impulsionar as pesquisas, o trio de exilados, figurinhas carimbadas em respeitadas revistas científicas como Nature, Science e PloS Biology, teve a onírica idéia de criar um instituto de neurobiologia... no Brasil. 
Assim nasceu o ambicioso Instituto Internacional de Neurociência de Natal. Orçado em 20 milhões de dólares, o dobro do custo da patriotada espacial e inútil que levou nosso primeiro astronauta ao espaço — mas com perspectivas muito superiores. Exemplo: saber como funciona o cérebro durante o sonho lúcido. Construir interfaces cérebro-máquina capazes até de controlar funções do corpo pela Internet. Ou, ainda, simplesmente, desvendar a língua falada por macacos.

Interessado em envolver os locais no NatalNeuro — que deverá abrigar escola para 250 crianças e clínica de saúde mental —, o neurobiólogo caçou alunos numa favela para descobrir que ensinar algo para crianças carentes é muito mais complexo. “Resolvi dar aula de capoeira, mas vi que antes tinha de ensiná-los a não xingar... 
Mas estou certo de que da capoeira vão aos computadores”, acredita o entusiasmado Sidarta, que teve seu sonho postergado por atrasos nos investimentos e em sucessivos entraves burocráticos. Mas fique frio: agnóstico, ele detesta papo cabeça. E adora dormir — religiosamente, oito horas por dia.
Em seu celebrado artigo na PloS Biology, você afirma que o sono está para a memória como a digestão para o alimento. Quem dorme mais aprende mais? Sem dúvida. Quanto melhor a qualidade do sono, melhor a memória. Temos três grandes estados de consciência: a vigília, o sono profundo, que é o sono de ondas lentas, e o sono REM [de “rapid eye movement”, estágio do sono em que ocorrem os sonhos]. Quem tem problema de apnéia noturna, por exemplo, tem problemas de memorização, pois dificilmente alcança o sono REM. Sonho é um processo ativo. Durante o sono surgem idéias importantes do dia-a-dia. Minha pesquisa acontece na confluência entre sonho, sono, memória e aprendizagem. A gente perdeu na cultura ocidental a tecnologia para o próprio corpo: o corpo é estranho no Ocidente. Entre os integrantes da tribo Senoi, na Malásia, havia o costume de todo dia as crianças relatarem seus sonhos para os pais. Os pais lhes davam conselhos, pois o controle do sonho seria muito importante para a pessoa e a coletividade. Essa psicanálise matutina era seguida pelos adultos, que faziam simulações de futuros possíveis para toda a tribo.

Borges escreveu que o sonho é a primeira ficção do homem. O que veio primeiro, o sonho ou a memória? O sonho é uma simulação do futuro. Isso não é evidente no dia-a-dia, quando as coisas são imprevisíveis, mas quando você tem grandes problemas isso se evidencia nos sonhos. Aí cabe Freud, a pulsão de satisfazer os desejos. Qualquer animal sonha com locais onde tem comida, fêmeas, ou machos... Essa é a função primordial do sonho. No mundo cão, você tem que predar, acasalar e não morrer. Gente que está na guerra sonha que está na guerra. Sonhos e pesadelos são coisas concretas quando os problemas são concretos. Se temos sonhos abstratos é porque não temos problemas sérios, e sim mil problemas mais ou menos sérios. Os pequenos problemas do cotidiano irão ressurgir nos sonhos, que servem para processar memória.
Como se prova que o sonho consolida a memória? A função original do sono, desde os répteis, é de time-out. Aprendeu, desliga, não tem mais interferência sensorial. A memória é como um tanque de areia onde a água traça caminhos por erosão. O cérebro de uma criança é a caixa de areia intacta; o cérebro do velho é um Grand Canyon. O sono permite que as coisas mais importantes sejam fixadas, fazendo com que a memória reverbere no cérebro por horas. Os processos moleculares que acontecem durante a vigília se repetem durante o sono. Parte do meu trabalho é desvendar o sono de ondas lentas, que é o sono profundo, quando não se sonha, quando os genes não são ligados, mas durante o qual as memórias ficam ecoando.
Isso durante o sono de ondas lentas... E durante o sono REM, o que acontece? Nesse sono, os genes são ligados e desligados. Essa ativação gênica é muito rápida, é como se fosse “a hora da verdade” para aquelas memórias em processo de sedimentação. Isso acontece em poucos segundos. Já no resto do sono REM, que dura muitos minutos, nossa impressão é que — note que isso ainda está sendo pesquisado —, depois que o sono de ondas lentas bate o martelo para decidir quais memórias serão estocadas no disco rígido, ocorre um processo de reverberação com algum grau de caos, de desorganização. Algumas coisas se aprendem por repetição, outras por insight, isto é, por reestruturação de idéias preexistentes. Não há idéias novas, e sim recombinações. Minha pesquisa sugere que durante a fase do sono REM as idéias se misturam, você “viaja” para gerar insights. Essas fragmentações e condensações, como Freud disse, devem servir para chacoalhar idéias velhas e transformá-las em novas.
Você fala muito de Freud, algo meio estranho para um biólogo... Sou um neurofreudiano, digamos. Nunca fiz a tentativa explícita de corroborar Freud biologicamente, mas os resultados da minha pesquisa deságuam nele. Ele disse que parte dos sonhos são memórias do dia anterior, os “restos diurnos”. Estava certo!

Mas é possível comprovar a psicanálise com a neurociência? Não posso tomar como 100% verdade o que Freud e Jung produziram, mas é possível observar os mecanismos da repressão ativa de memórias desagradáveis, um conceito freudiano clássico. Dá para apontar áreas frontais do cérebro com atividade elétrica quando ocorre a repressão, e outras áreas quando o conteúdo reprimidoressurge. A psicanálise se afastou da ciência e vice-versa — não creio que a importância de Freud seja a clínica. Era um grande neurocientista, sua contribuição é para o entendimento da psique. Pena que ele tenha ido à boca do cachorro nos anos 50... Se Freud tivesse acesso a uma máquina de ressonância magnética, hoje, não ia ter pra ninguém...

Há pessoas que se lembram de seus sonhos com exatidão e outras que mal se lembram da última vez que sonharam. Como se explica? Todos os adultos têm sono REM, e se você acordar alguém durante esse sono ele vai dizer o que estava sonhando. Lembrar-se do sonho é outra história. Sugiro que todos mantenham um diário de sonhos, o sonhário. Na primeira manhã, você não lembra, lembra só de uma frase. Se faz uma auto-sugestão antes de dormir, em duas semanas sai de uma frase para muitas páginas. Tem que criar condições para que a memória se forme, para reter a experiência.
E o sonho lúcido, realmente existe? É uma coisa que a ciência mal começou a estudar. Muita gente conhece, pouca gente controla. Durante o sono REM, as áreas frontais são desativadas, é como se o ego e o superego fossem desligados. O que se ativa são as áreas intermediárias do cérebro. Em geral, o sonho não é tão vívido quanto a realidade, não se age: as coisas acontecem com você. Já no sonho lúcido, você age — é um supersono REM em que o sonhador adquire controle efetivo do sonho. Trabalho com a hipótese de que o pré-frontal está ativado durante o sonho lúcido: você tem sudorese maior, o coração bate mais rápido, atinge um estado borderline — e, se ativar demais, acorda. O sonho lúcido acontece durante a soneca de meio de tarde ou de manhã cedo, quando o corpo descansou e você está próximo da vigília. Há aí um potencial cognitivo inexplorado, embrião de uma nova forma de consciência. Poderíamos aprender coisas incríveis nesse estado, como no filme Matrix — e mais legal do que um espaço virtual de computador é o que dá pra fazer com seu próprio corpo. É um trabalho inovador, e uma das linhas que quero pesquisar no Brasil.
Do sonho à realidade: você estava tão bem num laboratório de ponta nos EUA... por que voltar ao Brasil?É roubada mesmo! Há meses que faço coisas que não têm nada a ver com minha profissão. Dez anos lá e você pensa que tudo é fácil, já aqui a burocracia é gigante. Foi um risco calculado, porque não queria ficar lá só fazendo ciência e também não queria voltar ao Brasil pra dar aula em universidade. De que adianta ser capaz de ir à Lua
e moleques aqui terem 20 bichos-de-pé por pé?

Tem algum sonho para o Brasil? Acho que a gente só pode se salvar se virar uma superpotência. Senão, a gente vai simplesmente acabar. Podemos virar uma grande Bolívia ou tomar vergonha na cara agora. Temos um povo criativo e estamos comendo mosca. No Brasil reinventamos a roda, corremos atrás do que já foi feito — caso do Projeto Genoma. Tem que fazer o contrário, ser líder em campos virgens. Temos uma estrutura porreta nesse mapeamento genético, mas chega! Se a gente não investir em célula-tronco, nanotecnologia, interface cérebro-máquina, neurociência, se não tivermos programadores, não soubermos lançar satélite, não pesquisarmos o cérebro, estamos roubados. O Brasil precisa pensar em ser o melhor do mundo em algo muito específico. É melhor correr pensando em ser o primeiro do que correr para não ser o último.

Então só a ciência salva? Caminhamos para uma grande crise ecológica sem precedentes, e só daqui a 30 anos consertaremos o estrago. Se daqui a 50 anos não tiver água, teremos controle da Amazônia? As pessoas aqui não têm ambição, acham que têm que bater o ponto e ir pra casa. E a corrupção está no genoma do brasileiro. Tem que transformar a educação agora, para daqui a 20 anos mudar esse comportamento. A ciência pode revolucionar se construir para o avanço tecnológico, meritocrático e lúdico. Se for só l’argent, vai dar errado! Gente é para brilhar, mas aqui se acha que é só para sobreviver. Temos que trabalhar com as crianças. Elas devem sonhar, ter ambições altas. Se elas forem diferentes, vamos dar certo.