Pesquisa FAPESP - Edição 998 - Revolução Genômica I-III
Suplemento Especial > Revolução Genômica
Mario Eduardo Pereira e Sidarta Ribeiro
Psicanalista e neurocientista debatem sobre o diálogo hoje possível entre os seus campos de
conhecimento
Mariluce Moura
Junho 2008
Se a medicina, a neurologia e a psiquiatria do século XIX constituíram o solo original da teoria freudiana, Sigmund Freud teve que, serena e incisivamente, operar uma ruptura radical em relação a essa origem – a esse pai, poderíamos dizer – para desenvolver, de fato, a psicanálise, seus princípios fundamentais, postulados e propostas terapêuticas e, nesse movimento, inventar um campo próprio de conhecimento. Tão fecundo, aliás, que aos poucos sua produção extravasou completamente o âmbito clínico, se difundiu de forma espantosa e penetrou a cultura ocidental com tamanha força que a linguagem cotidiana e até a noção de sujeito, para certa exasperação dos filósofos, viram-se cada vez mais carregadas das visões freudianas do inconsciente ao longo do século XX.
Em paralelo, medicina, psiquiatria e neurologia seguiram seus próprios cursos, ignorando essa espécie de filha espúria que não cabia no campo científico tradicional. Nada é tão simples, entretanto, na história real da evolução do conhecimento – não se trata de algo comparável à decisão de duas pessoas que cortam relações pessoais porque simplesmente não se bicam. E tanto é assim que com os enormes avanços da neurociência nas últimas décadas, a par de um aparente cansaço de alguns postulados originais de Freud, seguidamente reinterpretados por novos pensadores da psicanálise, muitas vezes em sério confronto teórico, alguns contatos timidamente começaram a se insinuar entre os dois lados.
Não foi difícil caminhar daí até a indagação, por exemplo, quanto à possibilidade real de imagens do funcionamento do cérebro de uma pessoa no momento em que sonha, flagradas com precisão crescente graças às tecnologias que fazem parte do arsenal da neurociência contemporânea, darem fundamento biológico e suporte científico stricto sensu às noções de Freud sobre o papel dos sonhos na vida do indivíduo – basilares em seu pensamento. E, por fim, avançar até a interrogação sobre as possibilidades de um encontro produtivo entre neurociência e psicanálise em benefício de mais uma visão nova e rica a respeito do que é especificamente ser humano – essa questão jamais esgotada – na confluência incontornável entre o biológico e o cultural. E em benefício também, para ficar no terreno da prática, de tratamentos mais eficazes das tantas neuroses, desordens, síndromes, transtornos e – por que não? – doenças mentais, enfim, que afligem homens e mulheres do século XXI.
Impossível não é. Mas a julgar pelo debate dos “Novos fundamentos neurológicos para a teoria freudiana”, comandado pelo neurocientista Sidarta Ribeiro, 37 anos, e pelo psiquiatra e psicanalista Mario Eduardo Costa Pereira, 48 anos, na tarde do sábado, 17 de maio, no Pavilhão Armando de Arruda Pereira, Parque do Ibirapuera, dentro da programação cultural da exposição Revolução genômica, as possibilidades efetivas de um tal encontro não parecem exatamente fáceis no curto prazo. Até porque psicanálise e neurociência são ambas campos de conhecimento autônomos, com objetos, métodos e linguagens bem diversos, um aparentemente mais confortável hoje entre as humanidades e o outro solidamente plantado na área das ciências biomédicas, e não há nenhum desejo manifesto dos seus especialistas de ver um absorvido pelo outro.
Na verdade, Sidarta Ribeiro, diretor científico do Instituto Internacional de Neurociência de Natal Edmond e Lily Safra, detalhou durante o debate determinadas experiências recentes no campo da neurociência que, em sua visão, dão suporte a cinco proposições centrais de A interpretação dos sonhos, a bela pedra fundamental do edifício freudiano. E Mario Eduardo Costa Pereira, livre-docente do Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e coordenador do Serviço de Psicanálise do Hospital das Clínicas da mesma universidade, depois de resumir as idéias de Freud sobre a questão da hereditariedade, procurou mostrar em que dimensão o criador da psicanálise faz um debate com os temas da genética psiquiátrica contemporânea. Em seu entendimento, Freud em nenhum momento da construção de sua teoria e de sua proposta terapêutica descartou os elementos biológicos, de tal modo que situou mesmo a hereditariedade entre as precondições da neurose. Entretanto, observou, questão crucial em Freud, que é a tomada de posição do sujeito, jamais se resolveria no campo do experimento genético, mas só no campo da clínica e da escuta.
Sidarta, na defesa de que proposições essenciais de Freud são passíveis de demonstração neurofisiológica, referiu-se, por exemplo, a um experimento publicado em 2003, controlado por ressonância magnética funcional, em que se submetiam imagens embaralhadas ao olho dominante de um paciente e imagens claras de um objeto ao olho não dominante durante frações de segundo, e em seguida fundiam-se as imagens, obtendo algo embaralhado com um objeto no meio, e o resultado era que o paciente não tomava consciência de que vira o objeto.
“O experimento se vale de um fenômeno chamado rivalidade binocular. É uma maneira de você fazer uma estimulação sensorial invisível. O objeto está lá, mas a pessoa não tem consciência dele”, explicou enquanto exibia as imagens.
Em seguida ele mostrou imagens de ativação de duas regiões cerebrais visuais com funções diferentes, uma chamada via dorsal e a outra via ventral. “A dorsal é uma via mais ativada por movimentos e quando se apresenta a alguém objetos fixos, por exemplo, faces e ferramentas, ela tem uma preferência pelas últimas. Acreditamos que é porque ferramentas têm implícito nelas o movimento, o uso. Já a via ventral é mais ativada por faces.” O experimento a que ele se referia incluiu, assim, estímulos por frações mínimas de segundo, em que a imagem do objeto apresentada dentro da imagem embaralhada era uma ferramenta, primeiro, e depois uma face. “Do ponto de vista da consciência, a pessoa está sempre vendo uma imagem embaralhada, não tem consciência de que está vendo faces ou ferramentas. Mas qual é o resultado da ressonância?”, ele indaga e mostra um novo slide com barras pretas e cinzas ao público: “Na via dorsal, as barras cinzentas são para a situação visível e as barras negras para a invisível, quando o olho dominante está com a imagem embaralhada. O que vocês estão vendo é o seguinte: para faces, tem muito pouca ativação quando se utiliza a condição invisível, que são as barras pretas bem baixinhas. E tem bastante ativação para faces quando você utiliza a condição visível. Quando se utilizam as ferramentas, o que acontece? A visível cresce um tanto, mas também tem muita ativação na condição invisível”.
A pergunta é então: “Isso significa o quê? Que embora a pessoa não tenha a menor consciência do que está vendo, o córtex visual dorsal dela sabe que aquilo é uma ferramenta e não uma face”. Para Sidarta Ribeiro, esse é “um exemplo concreto, mensurável, quantitativo, de um processamento inconsciente. No caso, um processamento sensorial inconsciente. Você pode perceber que o cérebro tem a informação, mas o ego consciente não tem a informação”.
O pesquisador acrescenta para a platéia atenta: “Imagino que é o tipo de experimento que Freud faria se tivesse acesso à ressonância magnética funcional em sua época”.
A posição do sujeito
Em sua fala, que intitulou “Freud e a genética psiquiátrica”, Pereira começou por situar o médico Freud, formado na Faculdade de Medicina da Universidade de Viena, e que estudou “na maior parte do tempo junto com o grupo de Ernest Bruck, ou seja, um dos representantes da escola fisicalista da fisiologia em Viena”. Era um pesquisador de bancada que depois se dedicou à pesquisa neuropatológica. Lembrou que num texto de 1896, “A hereditariedade na etiologia das neuroses”, Freud afirmava que “a opinião sobre o papel etiológico da hereditariedade das doenças nervosas deve decididamente basear-se num exame estatístico imparcial e não em petições de princípio”. Ou seja, nem no início nem em momento algum de sua obra, disse Pereira, “Freud descartou a participação dos elementos biológicos na necessidade da descrição dos fatos anímicos que pretendia descrever”.
Falava evidentemente não de uma hereditariedade genética tal como é pensada hoje, mas dentro de uma tradição francesa segundo a qual “aquilo que, num certo grupo humano, se inscrevesse como desvio, como tara, como algo maléfico, inclusive do ponto de vista moral, se transmitiria de geração para geração. Freud também não pensava na herança num contexto darwinista, “tinha da transmissão uma concepção lamarckista, ou seja, a idéia de que certos elementos importantes para a espécie que pudessem ser assimilados em dado momento histórico se transmitiriam de geração a geração”. E Jean-Martin Charcot, o grande nome nos estudos da histeria, com quem Freud foi estudar em Paris, queria demonstrar que essa era uma doença neurológica como as outras, cujo elemento principal seriam “as famílias
neuropáticas”, enquanto os demais fatores etiológicos não passariam de causas incidentais.
Era mais ou menos esse o panorama dominante na virada do século quando Freud entrou no debate e o retomou propondo que a hereditariedade era precondição na patogênese das grandes neuroses. “Não poderia prescindir da colaboração de causas específicas, mas a importância da predisposição hereditária estava comprovada, conforme sua visão, pelo fato de que as mesmas causas específicas agindo num indivíduo saudável não produziam efeito patológico manifesto, ao passo que numa pessoa predisposta provocavam a emergência da neurose.” Assim, “é necessário compreender a inscrição dessa herança num certo contexto, que é ao mesmo tempo simbólico, histórico e cultural”. Mario Eduardo Pereira ressaltou que Freud comparou a ação da hereditariedade “ao multiplicador num circuito elétrico, que exagera o desvio visível da agulha, mas não pode determinar a sua direção”. E observou então que um dos pontos centrais do debate entre genética e psicanálise, muitas décadas depois, será a questão da posição do sujeito. “A questão é se ele é o responsável por suas ações ou se utilizará a genética como uma espécie de grande álibi biológico em que o sujeito padece de uma herança.”
Nesse ponto Pereira deixou Freud um pouco à margem, para abordar a crise em que se abismou a psiquiatria dos anos 1950 aos 1980. Foram quatro, segundo ele, os fatores principais dessa crise profunda. Primeiro, dado que a psicanálise passara a ocupar um papel cada vez mais importante na psiquiatria, as concepções sociológicas, comunitárias, o papel central da figura do médico começaram a perder poder. Em segundo lugar, a psiquiatria não tinha uma boa eficácia terapêutica: os primeiros medicamentos funcionavam com muitos efeitos colaterais e o tratamento mirava só os sintomas, ainda que tenham permitido uma revolução no campo do tratamento das psicoses e a redução drástica das internações.
Também os diagnósticos psiquiátricos não eram confiáveis, “e vários estudos mostraram que diferentes países e culturas atribuíam a mesma nomenclatura para fenômenos muito diversos”.
E, por fim, a própria definição de doença mental entrou em crise.
Pereira lembrou aí a figura de Kurt Schneider, que na década de 1950 propõe que doença mental é uma contradição em termos, porque se algo é doença, não é mental, idéia que Thomas Szasz, hoje vivo ainda, leva às últimas conseqüências ao argumentar que os critérios de definição de doenças mentais são éticos e sociais e não médicos. “Ou seja, para ele tratase de uma má metáfora, mas com conseqüências práticas e políticas muito intensas. Não podemos utilizar a noção de doença mental impunemente.” É a partir de então que entra em cena a expressão mental disorder. “O termo mental disorder passará a designar um
instrumental de natureza pragmática, prática. Nós, sociedade civil organizada, vamos deliberar que fenômenos desejamos ou não que a psiquiatria aborde com uma visão médica, vamos estabelecer critérios objetiváveis para identificar esses fenômenos, vamos colocar um rótulo nesse grupo de critérios e isso vai ser uma disorder. Ou seja, não tem qualquer caráter
ontológico, não tem qualquer caráter substancial, é um instrumento prático para intervir
psiquiatricamente em questões humanas concretas”, resume o pesquisador.
Inumeráveis problemas vão marcar essa opção que se fortalece nos anos 1970 e Pereira lembra, a propósito, que o comportamento homossexual foi excluído da lista de transtornos psiquiátricos pelo voto, por pressão da sociedade civil, no famoso Congresso da Associação Psiquiátrica Americana em 1974. Não que a exclusão lhe pareça mal, o exemplo serve para demonstrar a crescente perda de autoridade ou de legitimidade científica do psiquiatra. A palavra desordem também abre espaço para a noção de ordem mental que jamais é explicitada. O que se consolida, na visão do pesquisador, é a vitória de Szasz, com as desordens mentais ocupando o lugar de uma categoria pragmática, operacional e intencionalmente aberta. E se assim é, se não remete a nenhum elemento propriamente ontológico substancial de doença, por que o médico se ocuparia disso? Por que se ocuparia de categorias ético-morais? “Então, nesse sentido a psiquiatria não seria uma especialidade médica e biológica, mas seria simplesmente uma instrumentalização biológica de intervenção de práticas políticas.” Ora, uma vez constatada essa contradição, “ela causa um incômodo no campo psiquiátrico que muitos psiquiatras respondem de uma maneira muito apropriada: isso que se descobre na psiquiatria simplesmente é a causa secreta de toda a medicina. Só que na psiquiatria aparece antes e mais claro”.
Em meio ao enfraquecimento da psiquiatria, a genética psiquiátrica é vista como “uma espécie do farol que promete o repatriamento daquelas instâncias que foram delegadas ao conceito de disorder, ao campo da medicina dura fundada em entidades autônomas de natureza biológica”.
Entretanto, por mais promessas que venham dessa fundamentação genética, o problema retorna ao ponto de partida, diz Pereira, depois de relatar uma série de histórias hipotéticas em que está sempre em jogo a tomada de posição de uma pessoa frente às circunstâncias que a desafiam, para o qual o experimento genético em nada contribui.
Sidarta Ribeiro em sua fala retomou novos aspectos da vida de Freud, sua infância, sua relação com a família, antes de observar que o estado-da-arte em neurociência quando Freud se formou médico, para quem estava interessado no cérebro e no comportamento, era a anatomia. A fisiologia estava em seus primórdios, “o que já existia bastante no século XIX era a prática de matar um animal, retirar o seu cérebro, fixar aquele tecido, cortar bem fino e olhar no microscópio. E foi o que Freud fez por muitos anos E nesse sentido ele passou muito perto de grandes descobertas da anatomia que outros cientistas fizeram, da descoberta do neurônio, por exemplo, em 1878, mas ele estava mais interessado no tecido vivo, não no tecido morto, daí por que se orienta para estudos de fisiologia”.
Expulsão e reabsorção
Sidarta Ribeiro se refere também ao estágio em Paris como o grande ponto de virada de Freud, de seu retorno a Viena, quando ela já constata que “existem de fato disfunções psicológicas que são de origem orgânica”, mas mira outras enfermidades que, embora tenham sintomas muito graves, ele crê que poderá resolver pela palavra ou pelo comportamento. Faz referência às várias fases da evolução da obra teórica e clínica de Freud, ao grande marco que é A interpretação dos sonhos. “O que acontece nesse momento”, diz,“é que ele de fato se descola da neurociência de seu tempo, da neuroanatomia, da fisiologia, e cria uma série de conceitos novos, uma teoria nova, que lhe permite falar de fenômenos que a neurociência de seu tempo não permitia”.
Ribeiro detalhou para o público, com farta citação de autores, muitas passagens da vida de Freud, até sua morte no começo da guerra em 1939, para em seguida falar de duas descobertas que no pós-guerra foram vistas como fatos científicos que contribuíam para fragilizar a teoria freudiana, mas que, em sua visão, décadas depois, na verdade contribuíram para lhe dar mais suporte científico: a descoberta em 1953 do sono REM em bebês (da sigla rapid eyes movements), acompanhada da constatação de que nessa fase do sono os adultos sonhavam, e a descoberta, em 1958, das drogas antipsicóticas, a partir do haloperidol, um antagonista do receptor dopaminérgico do tipo 2. Vários outros exemplos ligados à evolução do conhecimento neurocientífico que investem contra Freud foram examinados pelo pesquisador, até chegar aos experimentos que já nos final dos anos 1990 e neste começo de século XXI, em seu entendimento, revertem esse quadro.
Além do experimento já citado que serviria de apoio à idéia de que grande parte do processamento mental é inconsciente, Sidarta Ribeiro detalhou várias outras experiências que se relacionam a quatro outras assertivas da teoria freudiana. E resumiu no final a relação entre psicanálise e neurociência nestas palavras:
“A primeira frase: ‘Grande parte do processamento mental é inconsciente’. Não preciso nem reformular essa frase, é um fato que pode ser verificado empiricamente, com experimentos, separando sujeito de objeto. Próxima: ‘Pensamentos indesejados podem ser reprimidos e se tornar inconscientes’. Vamos dizer que o córtex pré-frontal controla a supressão intencional de memórias por meio da desativação do hipocampo e da amídala. Próxima: ‘Sonhos contêm restos diurnos’. Podemos dizer que os sonhos reverberam memórias em nível eletrofisiológico e molecular. Mais uma: ‘Alucinações psicóticas são semelhantes a sonhos’. Vamos dizer que a vigília, em um modelo animal de psicose, é eletrofisiologicamente similar ao sono REM por causa de um aumento de dopamina. Mais uma: ‘Sonhos satisfazem desejos e antidesejos’.
Que tal ‘os sonhos concatenam fragmentos de memórias de forma a simular expectativas futuras de recompensa e punição mediadas por dopamina’? Mais uma: ‘Sonhos são conglomerados de formações psíquicas’. Isso é muito belle-époque. Que tal ‘os sonhos são
conglomerados de memórias’? E mais uma: ‘Sonhos são o caminho real para o inconsciente’.
Que tal ‘os sonhos permitem acessar o banco de memórias’?”. Nessa concepção, ele concluiu,
“o inconsciente tem uma definição biológica clara, ele é a coleção de todas as memórias que
temos e de todas as suas combinações possíveis”.
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