O mistério da origem da música
Fernando Reinach*
O Estado de São Paulo
Do ponto de vista evolutivo, o simples fato de a música existir é um mistério. Que vantagem adaptativa justifica seu aparecimento e manutenção ao longo de milhões de anos? Apesar de ainda não termos uma boa explicação, em seu livro mais recente Oliver Sacks fornece algumas pistas importantes. Analisando pacientes com diversos tipos de distúrbios relacionados à música, Sacks mostra como ela está relacionada à linguagem e ao pensamento lógico.
É fácil imaginarmos como o aparecimento da linguagem foi selecionado ao longo da evolução. Ela permite a cooperação entre os membros da espécie, facilitando a organização social. Mas a música é um caso à parte. Por que nossa capacidade de escutar, apreciar e criar música foi selecionada, se não cantamos para atrair parceiros sexuais ou para obter alimentos? Qual seria a função original de nossas habilidades musicais?
Sacks demonstra que a capacidade musical de nosso cérebro é muito mais extensa que a observada na maioria das pessoas. Diversos experimentos sugerem que as crianças nascem com ouvido absoluto (capacidade de reconhecer tons musicais independentemente do contexto em que se apresentam), mas perdem a habilidade com o desenvolvimento da linguagem. Crianças educadas em línguas em que a tonalidade é importante, como idiomas orientais, têm uma maior probabilidade de manter seu ouvido absoluto até a idade adulta. Também é sabido que pessoas que perdem a visão muito cedo desenvolvem uma maior sensibilidade musical.
Analisando dezenas de exemplos desse tipo, Sacks demonstra que muito provavelmente o aparecimento da nossa capacidade lingüística, há milhões de anos, foi responsável pelo cerceamento de nosso potencial musical - parte do qual ainda podemos recuperar por meio da educação.
Analisando uma série enorme de pacientes com distúrbios neurológicos, Sacks demonstra que o recrutamento das habilidades musicais pode, em muitos casos, ajudar na reorganização da mente de pacientes com distúrbios da fala e amnésia. A capacidade musical nesses casos parece ser um coadjuvante na organização de diversas atividades mentais que envolvem ritmos ou atividades repetitivas, como andar, contar ou enumerar dados. Talvez tenha sido essa a função das habilidades musicais na sua origem.
As observações de Sacks sugerem que, no passado distante, o ser humano utilizava de maneira extensa sua capacidade musical para organizar atividades mentais hoje organizadas por meio de outros mecanismos, como a linguagem e o pensamento lógico.
Se isso é verdade, fica fácil imaginar como essa capacidade teve papel importante na estruturação de nossas atividades cerebrais e por que foi selecionada durante a evolução.
O mais impressionante é imaginar que a nossa musicalidade atual nada mais é que os resquícios de uma capacidade mental que possuíamos e que perdemos quando a linguagem e o raciocínio lógico dominaram nosso universo mental. O universo mental em que vivíamos na época em que a música reinava livre em nosso cérebro é difícil de imaginar e impossível de reviver. Os remanescentes “arqueológicos” dessas habilidades é o que observamos em gênios como Mozart ou nos pacientes de Sacks. Essa hipótese é, no mínimo, intrigante.
Mais informações em Musicophilia: Tales of Music and the Brain, de Oliver Sacks, editora Alfred A. Knopf, Nova York, 2007.
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