domingo, 7 de setembro de 2008

Prefácio do livro: A ÁRVORE DO CONHECIMENTO



O ponto de partida desta obra é surpreendentemente simples: a vida é um processo de conhecimento; assim, se o objetivo é compreendê-la, é necessário entender como os seres vivos conhecem o mundo. Eis o que Humberto Maturana e Francisco Varela chamam de biologia da cognição. O modo como se dá o conhecimento é um dos assuntos que há séculos instiga a curiosidade humana. Desde o Renascimento, o conhecimento em suas diversas formas tem sido visto como a representação fiel de uma realidade independente do conhecedor. Ou seja, as produções artísticas e os saberes não eram considerados construções da mente humana. Com alguns intervalos de contestação (como aconteceu logo no início do século 20, por exemplo), a idéia de que o mundo é pré-dado em relação à experiência humana é hoje predominante – e isso talvez mais por motivos filosóficos, políticos e econômicos do que propriamente por causa de descobertas científicas de laboratório.
Segundo essa teoria, nosso cérebro recebe passivamente informações vindas já prontas de fora. Num dos modelos teóricos mais conhecidos, o conhecimento é apresentado como o resultado do processamento (computação) de tais informações. Em conseqüência, quando se investiga o modo como ele ocorre (isto é, quando se faz ciência cognitiva), a objetividade é privilegiada e a subjetividade é descartada como algo que poderia comprometer a exatidão científica. Tal modo de pensar se chama representacionismo, e constitui o marco epistemológico prevalente na atualidade em nossa cultura. Sua proposta central é a de que o conhecimento é um fenômeno baseado em representações mentais que fazemos do mundo. A mente seria, então, um espelho da natureza. O mundo conteria "informações" e nossa tarefa seria extrai-las dele por meio da cognição. Como aconteceu com muitas outras, essa posição teórica também produziu conseqüências práticas e éticas. Veio, por exemplo, reforçar a crença de que o mundo é um objeto a ser explorado pelo homem em busca de benefícios. Essa convicção constitui a base da mentalidade extrativista – e com muita freqüência predatória – dominante entre nós. A idéia de extrair recursos de um mundo-coisa, descartando em massa os subprodutos do processo, estendeu-se às pessoas, que assim passaram a ser utilizadas e, quando se revelam "inúteis", são também descartadas. Como todos sabem, a exclusão social alcança hoje em muitos países proporções espantosas, em especial no continente africano e na América Latina. Ao nos convencer de que cada um de nós é separado do mundo (e, em conseqüência, das outras pessoas), a visão representacionista em muitos casos terminou desencadeando graves distorções de comportamento, tanto em relação ao ambiente quanto no que diz respeito à alteridade.
O representacionismo é um dos fundamentos da cultura patriarcal sob a qual vive hoje boa parte do mundo, inclusive as Américas. A esse respeito, lembremos um dado histórico comentado por Hannah Arendt1 em relação aos bôeres, europeus em sua maioria descendentes de holandeses que iniciaram a colonização da África do Sul no século 17. O contato com os nativos sempre os chocava, diz Arendt. Para aqueles homens brancos, o que tornava os negros diferentes não era propriamente a cor da pele, mas o fato de que eles se comportavam como se fizessem parte da natureza.

Não haviam, como os europeus, criado um âmbito humano separado do mundo natural. Do ponto de vista dos bôeres, essa ligação tão íntima com o ambiente transformava os nativos em seres estranhos. Era como se eles não pertencessem à espécie humana. Por serem parte da natureza, eram vistos como mais um "recurso" a ser explorado. Por isso, era "justo" que fossem amplamente utilizados como produtores de energia mecânica no trabalho escravo, ou então simplesmente massacrados. Eis um exemplo do tipo de alteridade gerado pelo modelo mental fragmentador. A fragmentação traduz a separação sujeito-objeto, principal característica da concepção representacionista. Hoje, mais do que nunca, o representacionismo pretende que continuemos convencidos de que somos separados do mundo e que ele existe independentemente de nossa experiência. Foi exatamente para mostrar que as coisas não são tão esquemáticas assim que surgiu A Árvore do Conhecimento. Eis a sua tese central: vivemos no mundo e por isso fazemos parte dele; vivemos com os outros seres vivos, e portanto compartilhamos com eles o processo vital. Construímos o mundo em que vivemos durante as nossas vidas. Por sua vez, ele também nos constrói ao longo dessa viagem comum. Assim, se vivemos e nos comportamos de um modo que torna insatisfatória a nossa qualidade de vida, a responsabilidade cabe a nós. Ao contrário das tentativas anteriores de contestar pura e simplesmente o representacionismo, as idéias de Maturana e Varela têm nuanças que lhes proporcionam uma leveza e uma perspicácia que constituem a essência de sua originalidade. Para eles, o mundo não é anterior à nossa experiência. Nossa trajetória de vida nos faz construir nosso conhecimento do mundo – mas este também constrói seu próprio conhecimento a nosso respeito. Mesmo que de imediato não o percebamos, somos sempre influenciados e modificados pelo que vemos e sentimos. Quando damos um passeio pela praia, por exemplo, ao fim do trajeto estaremos diferentes do que estávamos antes. Por sua vez, a praia também nos percebe. Estará diferente depois da nossa passagem: terá registrado nossas pegadas na areia – ou terá de lidar também com o lixo com o qual porventura a tenhamos poluído. Do mesmo modo, as águas de um rio vão abrindo o seu trajeto por entre os acidentes e as irregularidades do terreno. Mas estes também ajudam a moldar o itinerário, pois nem a correnteza nem a geografia das margens determinam  isoladamente o curso fluvial: ele se estrutura de um modo interativo, o que nos revela como as coisas se determinam e se constróem umas às outras. Por serem assim, a cada momento elas nos surpreendem, revelando-nos que aquilo que pensávamos ser repetição sempre foi diferença, e o que julgávamos ser monotonia nunca deixou de ser criatividade. Tomemos ainda outra metáfora: não são só os timoneiros que dirigem os navios.
O meio ambiente também pilota as embarcações, por meio das correntes marítimas, dos ventos, dos acidentes de percurso, das tempestades e assim por diante. Dessa forma os pilotos guiam, mas também são guiados. Não há velejador experiente que não saiba disso. Portanto, pode-se dizer que construímos o mundo e, ao mesmo tempo, somos construídos por ele. Como em todo esse processo entram sempre as outras pessoas e os demais seres vivos, tal construção é necessariamente compartilhada. Para mentes condicionadas como as nossas não é nada fácil aceitar esse ponto de vista, porque ele nos obriga a sair do conforto e da passividade de receber informações vindas de um mundo já pronto e acabado – tal como um produto recém saído de uma linha de montagem industrial e oferecido ao consumo. Pelo contrário, a idéia de que o mundo é construído por nós, num processo incessante e interativo, é um convite à participação ativa nessa construção. Mais ainda, é um convite à assunção das responsabilidades que ela implica. Não se trata, porém, de uma escolha retórica, e sim do cumprimento de determinações que derivam da nossa própria condição de viventes. Maturana e Varela mostram que a idéia de que o mundo não é pré-dado, e que o construímos ao longo de nossa interação com ele, não é apenas teórica: apóia-se em evidências concretas. Várias delas estão expostas – com a freqüente utilização de exemplos e relatos de experimentos – nas páginas deste livro.
Em suma: se a vida é um processo de conhecimento, os seres vivos constroem esse conhecimento não a partir de uma atitude passiva e sim pela interação.  Aprendem vivendo e vivem aprendendo. Essa posição, como já vimos, é estranha a
quase tudo o que nos chega por meio da educação formal.

As teorias de Maturana e Varela constituem uma concepção original e desafiadora, cujas conseqüências éticas agora começam a ser percebidas com crescente nitidez. Nos últimos anos, por exemplo, tal compreensão vem se ampliando de modo significativo e tem influenciado muitas áreas do pensamento e atividade humanos. A Árvore do Conhecimento tornou-se um clássico, ou melhor, recebeu o justo reconhecimento de seu classicismo inato. Por isso, é importante contar aqui as linhas gerais de sua história.
Tudo começou na década de 1960, quando Maturana, professor da Universidade do Chile, intuiu que a abordagem convencional da biologia – que basicamente estuda os seres vivos a partir de seus processos internos – podia ser fertilizada por outro modo de ver. Tal abordagem os concebe em termos de suas interações Um pouco de História com o ambiente, no qual, é claro, estão os demais seres vivos. Em meados dos anos 60, Varela tornou-se aluno de Maturana. A seguir, já também professor, continuou a trabalhar com ele na Universidade do Chile. Juntos escreveram um primeiro livro: De Máquinas y Seres Vivos: Uma Teoría de la Organización Biológica Tempos depois, a instauração do regime militar no país, a partir de 1973, fez com que os dois autores fossem para o exterior, onde continuaram a trabalhar separadamente.
Em 1980, de volta ao Chile, retomaram a colaboração. Por essa época, a organização dos Estados Americanos (OEA) buscava novas formas de abordar a comunicação entre as pessoas e o modo como ocorre o conhecimento. Por intermédio de Rolf Behncke, também chileno e ligado a essa instituição, Maturana e Varela começaram a expor os resultados de suas pesquisas em uma série de palestras, assistidas por pessoas de formação heterogênea. A transcrição e edição dessas apresentações resultou num livro, publicado em 1985 em edição não-comercial para a OEA. Essa obra constitui, com algumas modificações, o que é hoje A Árvore do Conhecimento. Desde a sua primeira edição destinada ao público – em 1987 –, ela jamais deixou de despertar atenção, gerando comentários, resenhas, análises, pesquisas, outros livros. Tudo isso compõe hoje uma ampla bibliografia, espalhada por áreas tão diversas como a biologia, a administração de empresas, a filosofia, as ciências sociais, a educação, as neurociências e a imunologia.

O centro da argumentação de Maturana e Varela é constituído por duas vertentes. A primeira, como vimos, sustenta que o conhecimento não se limita ao processamento de informações oriundas de um mundo anterior à experiência do observador, o qual se apropria dele para fragmentá-lo e explorá-lo. A segunda grande linha afirma que os seres vivos são autônomos, isto é, autoprodutores – capazes de produzir seus próprios componentes ao interagir com o meio: vivem no conhecimento e conhecem no viver. A autonomia dos seres vivos é uma alternativa à posição representacionista. Por serem autônomos, eles não podem se limitar a receber passivamente informações e comandos vindos de fora. Não "funcionam" unicamente segundo instruções externas. Conclui-se, então, que se os considerarmos isoladamente eles são autônomos. Mas se os virmos em seu relacionamento com o meio, torna-se claro que dependem de recursos externos para viver. Desse modo, autonomia e dependência deixam de ser opostos inconciliáveis: uma complementa a outra. Uma constrói a outra e por ela é construída, numa dinâmica circular.
Mas o que fazer para que o ser humano se veja também como parte do mundo natural? Para tanto, é preciso que ele observe a si mesmo enquanto observa o mundo. Esse passo é fundamental, pois permite compreender que entre o observador e o observado (entre o ser humano e o mundo) não há hierarquia nem separação, mas sim cooperatividade na circularidade. Na verdade, Maturana e Varela dão – não apenas com este livro, mas com o conjunto de suas respectivas obras – uma contribuição relevante à compreensão daquilo que talvez seja o maior problema epistemológico de nossa cultura: a extrema dificuldade que temos de lidar com tudo aquilo que é subjetivo e qualitativo. Mas temos outra limitação. Para nós, não é fácil aceitar que o subjetivo e o qualitativo não se propõem a ser superiores ao objetivo e ao quantitativo; e que não pretendem descartá-los e substitui-los, mas sim manter com eles uma relação complementar. Não entendemos que todas essas instâncias são necessárias, e que é essencial que entre elas haja um relacionamento transacional, uma circularidade produtiva. Tal situação tem produzido, como foi dito, conseqüências éticas importantes. Parece incrível, mas muitas pessoas (inclusive cientistas e filósofos) imaginam que o trabalho científico deve afastar de suas preocupações a subjetividade e a dimensão qualitativa – como se a ciência não fosse um trabalho feito por seres humanos. Maturana e Varela mostram, com abundância de exemplos e constatações, que a subjetividade (tanto quanto a objetividade), e a qualidade (tanto quanto a quantidade), são na verdade indispensáveis ao conhecimento e, portanto, à ciência. Hoje, os dois autores seguem caminhos diferentes. No entanto, a diversidade de suas linhas de trabalho atuais não elimina um traço básico do ideário original: o que sustenta que os seres vivos e o mundo estão interligados, de modo que não podem ser compreendidos em separado.
Outro ponto de convergência é o que diz que, se o conhecimento não é passivo – e sim construído pelo ser vivo em suas interações com o mundo –, a postura de só levar em conta o que é observado deixa de ter sentido. A transacionalidade entre o observador e aquilo que ele observa, além de mostrar que um não é separado do outro, torna indispensável a consideração da subjetividade do primeiro, isto é, a compreensão de como ele experiência o que observa. Maturana permanece no Chile, de onde sai periodicamente para cursos, conferências e seminários em vários países do mundo, inclusive o Brasil. Aprofunda seu pensamento sobre a biologia do conhecimento e a respeito de sua concepção de alteridade, que chama de biologia do amor. A transacionalidade da biologia do conhecimento com a biologia do amor compõe a base do que ele denomina de Matriz Biológica da Existência Humana.

Varela trabalha em Paris, onde desenvolve duas linhas complementares de pesquisa. A primeira consta de estudos experimentais sobre a integração neuronal durante os processos cognitivos. A outra consiste em investigações sobre a consciência humana Tais pesquisas proporcionam contribuições à sua escola de estudos cognitivos – a ciência cognitiva enativa (teoria da atuação). Em linhas gerais, essa teoria sustenta que é preciso levar em conta não apenas a objetividade, mas também a subjetividade do observador, que havia sido preterida pelos modelos teóricos representacionistas de ciência cognitiva. Ou seja, pretende lançar uma ponte sobre o fosso que separa a ciência (o universo da objetividade) da experiência humana (o domínio da subjetividade).


Há anos que a Associação Palas Athena, por meio de sua Editora, pretende lançar uma tradução d'A Árvore do Conhecimento. Esse desejo sempre traduziu a certeza não apenas da importância da obra, mas também da afinidade entre as idéias dos cientistas chilenos e os princípios da Associação. Eis por que agora a concretização do projeto é para todos nós um acontecimento da maior importância, que queremos compartilhar.

Humberto Mariotti

Ficções da Mente


Acreditar nas histórias que inventamos é mais comum do que se imagina. Estudos mostram que a confabulação está na gênese da compreensão do mundo.

Por Helen Philips

Em uma das últimas vezes que vi minha avó, ela falou animada sobre o filho que estava longe, estudando na universidade. Parecia absolutamente convicta e muito orgulhosa, apesar de também reconhecer que seu único filho, sentado ao nosso lado, já tinha idade para se aposentar. Sem aparentar confusão ou angústia, seu relato era lúcido e complexo, como se uma história perfeitamente plausível tivesse saltado de algum ponto do passado para o vazio de sua memória recente.

Muitas pessoas idosas desenvolvem gradualmente amnésia para acontecimentos recentes, ao passo que as lembranças da juventude se mantêm ricas e detalhadas. Costumam inventar histórias para esconder seu constrangimento em relação aos lapsos, e em geral têm noção de que sua memória é confusa. Depois de uma série de derrames, o tipo de histórias que minha avó contava era um pouco diferente - os neurologistas as chamam confabulação, uma história ou memória fictícia da qual se tem certeza da veracidade. Não é mentira, pois não há intenção de enganar, e as pessoas parecem acreditar no que estão dizendo. Até recentemente isso era visto apenas como deficiência neurológica, um sinal de que algo está errado. Atualmente, no entanto, sabe-se que pessoas saudáveis também recorrem a essa prática.

"A confabulação é sem dúvida mais que o resultado de um déficit na memória", afirma o neurologista e filósofo William Hirstein, da Faculdade de Elmhurst, em Chicago, e autor do livro Brain fiction, de 2005. Crianças e adultos confabulam quando pressionados a falar sobre algo de que não têm nenhum conhecimento, ou após uma sessão de hipnose. Isso levanta dúvidas sobre a precisão dos depoimentos de testemunhas. Na verdade, todos nós podemos confabular de forma rotineira conforme tentamos racionalizar decisões ou justificar opiniões. Por que você me ama? Por que comprou aquela roupa? Por que escolheu determinada carreira? De forma mais extrema, alguns especialistas defendem que nunca temos a certeza do que é realidade, então precisamos confabular o tempo todo para tentar compreender o mundo à nossa volta.

A confabulação foi mencionada pela primeira vez na literatura médica no final da década de 1880 pelo psiquiatra russo Sergei Korsakoff (1853-1900). Ele descreveu um tipo distinto de déficit de memória apresentado por pessoas que abusaram do álcool ao longo de muitos anos. Esses indivíduos não tinham memória de eventos recentes, e preenchiam as lacunas espontaneamente com histórias algumas vezes fantásticas e impossíveis.

TESTE DE REALIDADE
O neurologista Oliver Sacks, da Faculdade de Medicina Albert Einstein, em Nova York, escreveu sobre um homem com a síndrome de Korsakoff em seu livro O homem que confundiu sua mulher com um chapéu, de 1985. O senhor Thompson nunca lembrava onde estava e por que, ou quem era seu interlocutor, mas inventava explicações elaboradas para as situações em que se encontrava. Se uma pessoa entrava na sala, por exemplo, ele a cumprimentava como se fosse um cliente de sua loja. Um médico de jaleco branco podia se tornar o açougueiro. Para o senhor Thompson essas ficções eram plausíveis, e ele parecia não perceber que elas se
modificavam o tempo todo. Comportava-se como se seu mundo improvisado fosse um lugar perfeitamente normal e estável.

Outros que também compartilham o hábito de contar histórias - e acreditar nelas - são aqueles que sofreram aneurisma ou ruptura da artéria comunicante anterior, um vaso sangüíneo cerebral que leva sangue para regiões do lobo frontal. Essas pessoas têm amnésia profunda, mas não parecem notar o problema e confabulam para preencher as lacunas. A mesma coisa pode acontecer com as que têm a doença de Alzheimer e outras formas de demência, bem como com quem teve o cérebro lesionado por um derrame.

O neurologista Armin Schnider, do Hospital da Universidade Cantonal de Genebra, diz que a vasta maioria das confabulações que escutou de seus pacientes até hoje se relacionava de forma direta ao início de sua vida. Um deles, dentista aposentado há décadas, preocupava-se muito pelo fato de deixar seus pacientes esperando. Uma mulher idosa falava do filho como se ele ainda fosse bebê. A maioria desses pacientes tinha lesões nos lobos temporais, especialmente no hipocampo, região estreitamente relacionada à memória. Parecia provável que eles tivessem de alguma forma perdido a capacidade de criar novos registros mnemônicos, por isso passaram a acessar os antigos. Era intrigante o fato de não perceberem isso; estavam convencidos de suas histórias, alguns até agiam com base nelas.

Estudando mais detalhadamente o funcionamento mental dessas pessoas, Schnider observou que elas realmente se lembravam de muito pouca coisa. Se lhes fosse pedido que decorassem uma lista de palavras, meia hora mais tarde não recordavam de nenhuma. Mas o problema seria criar novas memórias ou acessá-las mais tarde? Para responder a questão, Schnider mostrou a cada pessoa uma série de imagens e pediu que apontasse sempre que alguma delas aparecesse pela segunda vez.

Falharam na tarefa todos os amnésicos que não confabulavam e apenas alguns que criavam ficções. A freqüência de acertos foi maior nos confabuladores considerados "avançados".

O fato mais revelador do experimento surgiu quando Schnider o repetiu uma hora mais tarde, usando as mesmas imagens, mas em ordem diferente, alterando inclusive as que eram repetidas. O pesquisador pediu aos participantes que apontassem as novas repetições, sem levar em conta a sessão anterior. A pontuação dos amnésicos que não inventavam histórias foi idêntica à da primeira sessão, mas desta vez os confabuladores tiveram desempenho muito pior. Era comum dizerem que determinada imagem já havia aparecido antes na segunda sessão, quando na verdade eles a tinham visto no teste anterior. Assim, o problema dos confabuladores não é necessariamente não conseguir criar novas memórias, mas confundir lembranças e instante presente. "Eles parecem ser incapazes de suprimir recordações irrelevantes para a realidade em andamento", diz Schnider.

O pesquisador acredita que todos temos um mecanismo pré-consciente que distinguiria a realidade atual da fantasia, ou de uma memória sem grande importância. "O cérebro decide muito antes de o pensamento se tornar consciente", diz. Seus estudos usando eletroencefalografia (EEG) indicam que, quando os indivíduos capazes de suprimir memórias
irrelevantes vêem as imagens na segunda sessão, um padrão de atividade característico ocorre em 0,2 a 0,3 segundo. Entretanto, eles levam o dobro do tempo para ter consciência do que está acontecendo. O processo de decisão, rápido demais para a percepção, também se dá de
forma inconsciente. "Nosso cérebro distingue fato de ficção bem antes de termos acesso aos nossos pensamentos", conclui Schnider. A confabulação pode resultar da incapacidade de reconhecer quais memórias são relevantes, reais e atuais. "Mas essa não é a única razão
pela qual as pessoas inventam histórias", pondera William Hirstein. Segundo ele, a maior parte dos confabuladores são pessoas que têm ilusões ou falsas crenças sobre a própria doença (ver
Mente&Cérebro, no 162, pág. 33.)

Embora surpreendente, é comum que, alguns dias após um derrame, muitos pacientes se neguem a acreditar que algo de errado aconteceu, mesmo quando estão com membros paralisados ou até cegos. Então inventam histórias elaboradas para explicar seus problemas. Uma das pacientes de Hirstein, por exemplo, tinha o braço esquerdo paralisado, mas acreditava que ele funcionava normalmente. Dizia que o membro deitado ao lado dela não era de fato o seu. No momento em que Hirstein apontou a aliança de casamento, ela disse com horror que alguém a havia pegado. Quando o médico pediu que a paciente provasse que nada havia de errado com seu braço esquerdo, ela disse que estava passando por uma crise de artrite.

Trabalhando com pessoas na mesma situação, o neurocientista Vilayanur Ramachandran, da Universidade da Califórnia em San Diego, ofereceu-lhes uma quantia em dinheiro como recompensa por tarefas que eles seguramente não podiam realizar, como bater palmas ou trocar uma lâmpada. Tarefas para as quais eles eram capazes eram pagas com quantias menores. Os pacientes sempre se ofereciam para as que pagavam mais, como se não tivessem a menor idéia de que iriam falhar.

Uma condição rara pode fazer as pessoas confabularem de forma ainda mais complexa. Depois de um derrame, algumas manifestam a síndrome de Capgras, cuja principal característica é a de acreditar que seus parentes próximos tenham sido substituídos por impostores disfarçados
(ver "Invasão dos sósias".
Mente&Cérebro, no 143, dezembro de 2004.) Para se justificar, inventam histórias de abdução por alienígenas e as mais estranhas conspirações. Em casos extremos, deixam de se reconhecer no espelho, ou acreditam que todos estão mortos. Para cada situação, confabulam para explicar os absurdos.

O que todos esses distúrbios têm em comum é uma discrepância aparente entre percepção e sentimentos do paciente, e a informação que recebe. "Em todos os casos a confabulação é um problema de conhecimento", diz Hirstein. Quer seja uma lembrança, uma resposta emocional ou uma imagem corporal perdida, se o conhecimento não está lá, algo preenche a lacuna.

Uma região do cérebro chamada córtex órbito-frontal (COF), situada nos lobos frontais, pode ajudar a entender o fenômeno. Também conhecido como parte do sistema de recompensa, o COF nos induz a fazer coisas prazerosas ou buscar o que precisamos. Hirstein e Schnider sugerem, entretanto, que esse sistema teria papel ainda mais básico. Essa e outras regiões frontais estariam ocupadas monitorando as informações geradas por nossos sentidos, memória e imaginação, suprimindo o que não é necessário e definindo o que é compatível com a realidade e relevante.

Segundo o neurocientista Morten Kringelbach, da Universidade de Oxford, esse rastreamento da realidade nos permite classificar tudo objetivamente para que possamos definir nossas preferências e prioridades.

Pessoas que confabulam podem ter lesões no COF, o que significa não receber toda a informação ou não a classificar corretamente. Outra possibilidade é haver lesões em outras regiões que se comunicam com essa área do cérebro. De qualquer forma, quando a informação recebida é incompleta ou contraditória, há um esforço extra para fazer as coisas se encaixarem - e o resultado disso é a ficção. Kringelbach suspeita, porém, que as pessoas não confabulam apenas quando há algo errado.

Todos nós o fazemos rotineiramente. As crianças precisam de pouco estímulo para inventar histórias, sobretudo quando pedimos que falem de coisas que não conhecem. Do mesmo modo, os adultos podem ser persuadidos a confabular, como mostraram Timothy Wilson e Richard Nisbett, da Universidade da Virgínia. Eles prepararam uma vitrine com quatro peças de roupa idênticas e pediram aos participantes do estudo que escolhessem qual delas era de melhor qualidade. Sabe-se que, dada uma seqüência de objetos, as pessoas tendem a preferir, de forma inconsciente, o que está mais à direita, se não houver nenhum outro critério de seleção. De fato, quatro em cada cinco pessoas preferiram a peça da direita. Quando se perguntou a razão da escolha, as alegações incluíram a delicadeza da textura, a cor mais rica, entre outras. Isso sugere que, embora tomemos decisões inconscientes, nós as racionalizamos conscientemente, e a forma como o fazemos pode ser pura ficção ou confabulação.

Experimentos feitos pelo filósofo Lars Hall, da Universidade de Lund, Suécia, desenvolveram ainda mais essa idéia. Foram mostrados aos voluntários pares de cartas com retratos. Em seguida perguntou-se qual deles era o mais atraente. Detalhe importante: o sujeito que apresentava o experimento era um mágico profissional e trocava a carta escolhida pela rejeitada, sem que o participante percebesse, claro. Depois o voluntário deveria responder por que escolhera cada retrato. As pessoas usaram argumentos elaborados sobre cor do cabelo, olhar ou personalidade presumida com base no rosto substituído. Ficou claro que todos confabulam sempre que não sabem por que fizeram uma opção em particular. A confabulação poderia ser uma rotina para justificar as escolhas cotidianas? Quem sabe.

Há muitas evidências de que boa parte do que fazemos seja resultado do processamento inconsciente. Em 1985, Benjamin Libet, da Universidade da Califórnia em San Francisco, sugeriu que um sinal para mover um dedo é "visualizado" no cérebro vários milésimos de segundo antes de alguém estar ciente de que pretendia movê-lo. A idéia de livre-arbítrio pode, portanto, ser mera ilusão. "Não temos acesso a todas as informações nas quais baseamos nossas decisões, por isso criamos ficções para racionalizá-las", diz Kringelbach. Segundo ele, isso deve ser bom, pois talvez ficássemos paralisados se fôssemos cientes de como tomamos cada decisão. Wilson concorda e fornece números: estudos indicam que nossos  sentidos podem captar mais de 11 milhões de fragmentos de informação por segundo, ao passo que a estimativa mais otimista sugere que apenas 40 seja percebidos conscientemente. Talvez tudo que nossa
mente faça seja imaginar histórias para entender o mundo. "Fica em aberto a possibilidade de que, no extremo, todo mundo confabule o tempo todo", diz Hall.

Lembranças confusas

A tendência de confabular pode causar preocupação quando o assunto é a psicologia do testemunho. Com que facilidade histórias inventadas se convertem em falsas memórias? A psicóloga Maria Zaragoza, da Universidade Estadual Kent, em Ohio, mostrou um vídeo a um grupo e depois fez perguntas individuais com a resposta sutilmente sugerida na própria pergunta. Quando os indivíduos não conseguiam responder - porque a informação simplesmente não estava na fita -, a pesquisadora os encorajava a inventá-la. As pessoas ficavam constrangidas, diziam que não sabiam e estavam apenas inventando uma resposta. Uma semana depois, porém, mais da metade confirmou suas declarações falsas como se fossem verdadeiras.

Outro estudo revelou que crianças se comportam da mesma maneira. Quando perguntaram a elas se o homem da manutenção, que elas viram numa sala de espera, havia quebrado algo que na verdade nem havia tocado, todas disseram que nada viram ou que o homem não tinha culpa de nada. Então se pediu que elas inventassem uma história na qual ele havia quebrado coisa alguma. Na semana seguinte, muitas crianças acreditavam em suas próprias mentiras. Assim como nos adultos, o efeito foi mais evidente quando o pesquisador forneceu um feedback positivo, dizendo à pessoa que a resposta inventada era a correta. 

Para Zaragoza, esses resultados alertam para a forma como os testemunhos judiciais são feitos e colocam em xeque sua credibilidade. Pelo mesmo motivo o uso da hipnose como técnica forense foi muito criticado nos anos 80. Nessa época a psicóloga Jane Dywan, da Universidade de Brock, em Ontário, conduziu um estudo no qual mostrou fotos a cada participante e depois testou sua capacidade de recordar nos dias seguintes. Uma semana depois, hipnotizou os mesmo sujeitos e perguntou o que conseguiam lembrar. Todos tiveram mais recordações do
que antes, mas quase todas eram falsas. Segundo Dywan, a hipnose aumenta o foco de atenção e a facilidade com que as informações vem à tona, e isso pode nos dar maior familiaridade em relação às memórias falsas, que normalmente só teríamos com as verdadeiras. "Combine essa confiança a uma maior capacidade de lembrar e teremos uma situação perigosa", diz a psicóloga.

Representação do "agora"

As letras X, P, e Z fora dos quadrados indicam eventos, e as de dentro representam traços de memória. Segundo o modelo proposto pelo pesquisador A. Schnider, o tamanho de cada uma equivale a sua relevância. Em pessoas saudáveis, novas informações adquirem alta relevância na representação cortical (X) e geram associações mentais. Algumas perdem conexão com a realidade corrente e tornam-se fantasias. As informações subseqüentes (P, Z) tornam-se então altamente relevantes e suscitam novas associações. Já as prévias, sem relação com a realidade corrente, são suprimidas ou desativadas. 

Na amnésia clássica, um novo evento também provoca associações, porém o dado assimilado não é retido ou consolidado. O "agora" é representado no pensamento, mas as informações são logo perdidas.

Na confabulação espontânea, as informações parecem provocar associações mentais, mas quando as novas (P, Z) são processadas, aquelas associações prévias não são desativadas. Qualquer traço de memória ativado, pertinente ou não, pode guiar o pensamento e o
comportamento.

Fonte: Spontaneous confabulations, disorientation and the processing of "now". A. Schnider, em Neuropsychologia, vol. 38, págs. 175-185, 2000.

Para conhecer mais

O homem que confundiu sua mulher com um chapéu. O. Sacks. Companhia das Letras, 1997.
Brain fiction. William Hirstein. MIT Press, 2005.
One cause for all confabulations? A. Schnider, em Science, vol. 27, pág. 1262, 2005.

Sobre a autora

HELEN PHILIPS é jornalista (c) New Scientist

- Tradução de Julio Oliveira

O mito dos 10% do cérebro

Suzana Herculano-Houzel

 O cérebro todo, os neurônios todos, a todo vapor
Numa pesquisa chamada "Você Conhece Seu Cérebro?", perguntei a 2000 cariocas, entre outras coisas, se eles concordavam que "utilizamos normalmente apenas 10% do nosso cérebro." A metade concordou. Fiz a mesma pergunta a 35 neurocientistas, e somente 2 concordaram. O veredicto? Essa estória de usar 10% do cérebro é nada mais do que um mito.
Vamos deixar claro logo do começo: não há qualquer razão científica para supor que usemos 10% do nosso cérebro. Nem 10% dos seus neurônios. Nem 10% da sua capacidade. Todas as evidências sugerem o contrário: usamos nosso cérebro INTEIRO. Os 10% ficam por conta da imaginação de quem conseguiu convencer quase metade da população do Rio a aceitar esse mito.
Por que tantas pessoas aceitam essa idéia dos 10% do cérebro? Talvez porque à primeira vista, essa estória parece muito convidativa. Se usamos 10% do cérebro, então temos 90% de reserva, que se conseguirmos aprender a usar, poderíamos ficar até dez vezes mais inteligentes, memorizar dez vezes mais fatos, fazer contas dez vezes mais rápido... Tudo balela.
E o que é pior, com gravíssimas conseqüências. Quem acredita que 90% do seu cérebro são dispensáveis não tem porquê evitar choques à cabeça usando capacete na motocicleta ou cinto de segurança no carro. Quem não sabe que usa seu cérebro inteiro a todos os momentos ainda não pôde realmente apreciar a maravilha que tem dentro da cabeça, e fica susceptível ao assédio de livros e cursos que se auto-denominam "científicos" e pretendem ensinar "como usar os outros 90%". Espalhar o mito de que usamos 10% do cérebro ou da sua capacidade é um dos maiores desfavores que a mídia já fez ao homem e à ciência.


Quais 10%?
Para entender por que a estória dos 10% é balela, primeiro é necessário esclarecer de que 10% estamos falando. Se são 10% da massa cerebral, 90% do que temos dentro da cabeça devem então ser dispensáveis. Se são 10% dos neurônios, os outros 90% devem ser silenciosos, ou então redundantes, servindo só como "reservas". Ou se são 10% da capacidade de desenvolvimento intelectual... será que alguém sabe o que seriam os 100%?
Em qualquer dos três casos, toda a evidência científica está do outro lado. Lesões do cérebro, mesmo pequenas, têm conseqüências graves ao intelecto e ao comportamento. Também é possível "escutar" as células nervosas em atividade, e em sua grande maioria, e em quase todo o cérebro, é possível identificar algum aspecto do mundo ou do comportamento animal relacionado. Quanto às potencialidades, não é simples tentar estabelecer um limite de o quê o cérebro pode ou não conseguir fazer. Mesmo porque várias vezes um limite parece ter sido atingido, só para então ser ultrapassado graças a uma mudança de estratégia - exatamente como no caso de atletas de competição.
O cérebro todo...
É verdade que algumas lesões cerebrais podem não ter consequências... até que alguém descubra a primeira. Quando os neurofisiologistas do século 19 tentavam descobrir se cada região do cérebro tinha uma função definida, a prática comum era remover partes do cérebro de animais de laboratório e observar se havia perturbações do comportamento, do aprendizado, perda de capacidades sensoriais, ou motoras. Foi assim que por exemplo o alemão Hermann Munk ( 1839-1912 ) pôde determinar que a visão está localizada na região mais posterior do cérebro: cachorros que perdiam esta região ficavam incapazes de reconhecer objetos pela visão. Mas pesquisadores como o psicólogo americano Karl Lashley (1890-1958) acreditavam que a maior parte do cérebro podia ser removida sem grandes conseqüências para capacidades como a memória, já que ratos que tinham perdido grandes partes do cérebro ainda eram capazes, por exemplo, de tarefas específicas como encontrar a saída de um labirinto.
Lashley usava suas observações para criticar aqueles que defendiam que certas áreas definidas do cérebro desempenham funções específicas. Para Lashley, funções cerebrais como a memória e o aprendizado eram desempenhadas por neurônios espalhados nas mais diversas regiões do cérebro. Na interpretação de seus experimentos, Lashley esqueceu de considerar que os animais operados poderiam usar por exemplo os sentidos restantes para compensar um sentido lesado e ainda conseguir deixar o labirinto. De fato, hoje sabemos que cada um dos sentidos, os movimentos e certos aspectos da memória têm, sim, localização precisa no cérebro, e a lesão ou remoção dessas regiões cerebrais em humanos provoca deficiências graves. E como demonstra a neurologia, lesões afetando muito menos do que 1% do volume do cérebro podem ter conseqüências devastadoras, provocando parálise, perda da fala, ou vários outros distúrbios neurológicos graves.
É verdade no entanto que ainda não se conhece a função de cada pedacinho do cérebro. Pode ser que existam de fato algumas áreas "de reserva", quem sabe? Mas tudo leva a crer que identificar a função das áreas que faltam será somente uma questão de tempo. E de encontrar a pergunta certa. Afinal, quando um neurocientista tenta determinar a função de uma área, ele não começa do nada. Não é possível "perguntar" a um pedaço do cérebro para quê ele serve; além das opções serem infinitas, não existe um aparelho que se coloque sobre uma região do cérebro e indique o que ela faz. O que é possível há uns vinte anos é observar o consumo de energia no cérebro de um voluntário e perguntar quais regiões trabalham mais quando ele realiza uma determinada tarefa. Depois, é só prosseguir relacionando cada região a uma tarefa específica. Se uma região não se tornou mais ativa em nenhum teste, é provavelmente porque ainda não testaram a tarefa certa... Na verdade, o problema que os neurocientistas encontram é o oposto: por mais simples que seja a tarefa, nunca é apenas uma pequena porção do cérebro que se ativa; várias áreas de função ainda indeterminada são ativadas também.
Testando-se uma série de tarefas simples é possível se comprovar que existem regiões do cérebro que somente identificam cores, ou objetos, ou movimento. Isso quer dizer que quando vemos um filme, o tratamento da imagem sozinho já mobiliza funções espalhadas em várias partes do cérebro. Além disso, dificilmente uma única tarefa é executada por vez. Pular corda, por exemplo, não é simplesmente "pular corda". Para isso, uma menininha precisa conseguir acompanhar com os olhos o movimento da corda, pular no momento certo, na altura certa, com o pé certo, e sem parar de cantar a musiquinha, colocando em ação no seu cérebro áreas visuais, áreas motoras, áreas auditivas... só aí já temos mais de 10% da massa cerebral em funcionamento num dado momento. E nem sequer falamos das regiões que cuidam da memória da musiquinha ou do sentimento de euforia com a brincadeira!
... os neurônios todos...
A unidade funcional do cérebro é o neurônio, uma célula especializada em receber e transmitir sinais. Como todas as células do corpo, também os neurônios são pequenas baterias, com uma carga de mais ou menos 0.07 volts (isso mesmo, apenas vinte vezes menos do que uma pilha comum!). Em todas as células, essa carga se mantém constante às custas de energia, e não varia ao longo da sua vida. A não ser nas duas exceções conhecidas: as células musculares e os neurônios, ambos capazes de se descarregarem ou sobrecarregarem e logo em seguida voltar à carga normal. Nas células musculares, o descarregamento desencadeia o encurtamento da célula, levanto à contração muscular. Nos neurônios, o descarregamento provoca a liberação sobre outros neurônios de substâncias chamadas neurotransmissores que por sua vez provocam o descarregamento desses, e assim por diante. Como ele é comunicado de uma célula à outra, esse descarregamento pode ser considerado um sinal que é transmitido pra lá e pra cá no cérebro.
Foi um fisiologista inglês, Lord Edgar Adrian (1889-1977), quem descobriu, em 1928, que os neurônios dos sentidos respondem a estímulos como um toque na pele com uma sequência de descarregamentos e recarregamentos. Quanto mais intenso o estímulo, mais vezes o neurônio se descarrega; mas a cada vez, o descarregamento é sempre igual. Isso quer dizer que os neurônios indicam a presença e intensidade do estímulo se descarregando mais ou menos vezes, e não simplesmente um pouco mais ou um pouco menos.
Assim, neurônios que estão "fazendo alguma coisa" estão transmitindo sinais - ou seja, se descarregando e recarregando. Para saber então se um neurônio participa por exemplo do tato, pode-se determinar se ele é ativado por um toque em alguma parte do corpo, quer dizer, se ele se descarrega mais vezes com o toque. Uma das maneiras de fazer isso é colocar um eletrodo ao lado do neurônio e escutá-lo descarregar. Literalmente. Esse é o procedimento mais usado em laboratórios de neurofisiologia onde se estuda a relação entre a atividade neuronal e por exemplo a percepção, o movimento, ou a memória. O eletrodo funciona como um fio cuja minúscula ponta desencapada fica dentro do cérebro. Quando os neurônios descarregam, parte da corrente liberada passa para a ponta do eletrodo, que é ligado a um amplificador, que por sua vez transforma a corrente elétrica em som. Um eletrodo no cérebro funciona portanto como um microfone que torna audível a atividade dos neurônios. Ligando-se o amplificador ouve-se o som do cérebro: um chiado semelhante ao som que faz a agulha da vitrola no fim do disco. É exatamente como se puséssemos um microfone sobre uma multidão. Chegando no entanto o microfone mais perto de uma só pessoa, ou neurônio, ouve-se somente a sua voz.
O som dos descarregamentos de um neurônio estimulado no nosso exemplo por um toque à pele é uma série de pipocadas na caixa de som. E o som desse mesmo neurônio sem ser estimulado é.. uma série de pipocadas na caixa de som! Bem menos pipocadas, é verdade; mas ainda assim, pipocadas. É difícil encontrar no cérebro um neurônio que passe mais de dez segundos sem descarregar. Um neurônio estimulado pode pipocar até umas 100 vezes por segundo, mas sem o estímulo, é possível ouvir até mesmo 20 pipocados por segundo! Isso quer dizer que mesmo não estimulado, sem "fazer o que ele faz", um neurônio está sempre fazendo alguma coisa. É o que os neurocientistas denominam "atividade espontânea".
Usando esse método de ouvir a atividade dos neurônios, é fácil verificar que em todas as partes do cérebro há neurônios ativos. Em qualquer experimento de eletrofisiologia cerebral, o pesquisador começa descendo o eletrodo aos poucos no cérebro, até chegar na região que deseja estudar. Isso pode ser feito sob anestesia geral, ou em um animal ou em um paciente acordado, porque o próprio cérebro não é sensível - não sente toque, dor, nada. Ao longo do caminho, o eletrodo vai encontrando uma sequência de neurônios ativos, pipocando. Quando se afasta de um neurônio e começa a perder seu som, se aproxima de outro, cujo pipocar logo se faz ouvir. Em qualquer lugar do cérebro onde haja neurônios, não há buracos na trilha de um eletrodo: todos os neurônios estão continuamente se descarregando e recarregando, fazendo alguma coisa. Mesmo que ainda não se entenda o quê.
... e a todo vapor
Acreditar que nós usamos apenas 10% das capacidades do cérebro é considerar que o sistema trabalha longe do seu máximo. No entanto, basta examinar os limites do cérebro para ver que o sistema já roda a todo vapor, fazendo tudo o que pode fazer.
Há quatro limitações principais ao funcionamento do cérebro: a velocidade de transmissão dos sinais; o número de impulsos (descarregamentos) que podem ser emitidos por segundo; o número de neurônios disponíveis; e o número de conexões que cada neurônio consegue manter.
A velocidade de transmissão determina o tempo que um sinal leva para chegar de um neurônio a outro. Esse sinal, como vimos, é um descarregamento, um pulso de eletricidade que é conduzido ao longo do braço maior do neurônio, o axônio. Um axônio não trafega sozinho no sistema nervoso, mas junto com outros milhares em feixes chamados nervos, ou tratos quando dentro da medula espinhal ou do cérebro. A velocidade de transmissão nos nervos e tratos é altíssima. Pelo nervo ciático, por exemplo, um sinal do dedão do pé pode ser transmitido até a medula espinhal a uma velocidade de 100 metros por segundo, o que quer dizer que ele viaja mais ou menos um metro de perna em 0.01 segundo. Se não parece muito rápido, pense que isso corresponde a 360 km/h - mais rápido que um carro de Fórmula 1! Ao longo de um dado axônio, um sinal nunca é transmitido uma hora mais rápido, outra mais devagar: a velocidade de transmissão é sempre a mesma, no limite da capacidade daquele axônio.
Um outro limite ao funcionamento do cérebro é o número de impulsos, ou descarregamentos, que um neurônio pode transmitir por segundo. Esse número depende do tempo necessário para recarregar o neurônio, que varia de uns 0.001 a 0.003 segundos. Isso quer dizer que o número de descarregamentos de um neurônio pode em princípio chegar a 1000 por segundo! Na prática, os neurônios trabalham em uma faixa de 10 a 50 ou 100, variando por exemplo de acordo com a presença de um estímulo, com a intensidade deste, e com outros fatores como o estado de alerta do animal. Descarregar mais vezes ou por muito tempo sem descanso faz com que o neurônio esgote sua reserva de neurotransmissor, ficando incapaz de transmitir sinais por alguns minutos, até se reabastecer. Além disso, atividade além dessa faixa é perigoso: se o neurotransmissor é necessário para atravessar o sinal para o próximo neurônio, em quantidades muito grandes ele é tóxico, podendo causar a morte dos neurônios nos arredores. Sem falar que quando a atividade fica descontrolada, pode iniciar um ataque epiléptico. Se o número de disparos por segundo de fato fica em aproximadamente 10% do limite máximo teórico, como se vê, na prática a capacidade é outra - e para não colocar o sistema em risco, é perto dessa capacidade que os neurônios normalmente trabalham.
Outra limitação importante é o número de neurônios disponíveis no sistema nervoso. Embora só no cérebro sejam em torno de cem bilhões, esse número não aumenta significativamente na vida de um animal adulto [1] . Isso quer dizer que o cérebro adulto já dispõe de todos os neurônios com os quais poderia contar, e como vimos acima, deve usá-los todos.
O último fator limitante na lista é o número de conexões que um neurônio pode estabelecer com outros. Esse número não pode aumentar indefinidamente porque todas essas conexões devem ser alimentadas pelo neurônio. Mas visto o número de conexões que um neurônio típico faz, esse limite não deve ser um problema: são mais de dez mil neurônios diferentes contatados..
100% não são o limite
Se usamos toda a capacidade do cérebro, como é possível então desenvolver nossas habilidades? A resposta está na propriedade mais maravilhosa e característica propriedade do sistema nervoso: a capacidade de fazer novas combinações entre seus elementos. Embora a transmissão não possa ser mais rápida, sua eficiência pode aumentar (até um certo limite, mais uma vez!), ou diminuir. Quando aumenta, a conexão entre dois neurônios fica "fortalecida"; quando diminui, a conexão fica "enfraquecida". Além do mais, cada conexão não é fixa; uma conexão enfraquecida demais pode ser eliminada, e sempre dentro do que um neurônio pode suportar, uma nova pode ser feita em outro lugar, com outro neurônio. Fortalecer essas novas conexões, estabilizando-as, é uma maneira de criar novas associações. Os neurocientistas hoje estão convencidos de que é esta a base do aprendizado. Como sempre se pode tirar uma conexão daqui e criar outra ali, será sempre possível fazer mais uma combinação, mais uma associação entre neurônios, e aprender mais alguma coisa. Talvez nem sempre fique tudo na lembrança; talvez seja mesmo necessário esquecer algumas coisas para poder lembrar de outras. Não importa. Aprender, a mais nobre função do cérebro, não funciona a 10%, nem a 100%, nem a 1% da sua capacidade. Não há limite. Simplesmente funciona. (SHH)

Estudo flagra o cérebro no ato de lembrar

07/09/2008
Benedict Carey

Pela primeira vez, cientistas registraram células cerebrais isoladas no ato de acionar uma memória espontânea, revelando não apenas onde uma experiência lembrada fica registrada, como também, em parte, como o cérebro consegue recriá-la.

Os registros, feitos em cérebros de pacientes de epilepsia que eram preparados para cirurgia, demonstram que essas memórias espontâneas residem em alguns dos mesmos neurônios que se ativaram mais intensamente quando o evento lembrado ocorreu. Os pesquisadores há muito teorizavam sobre isso, mas até agora só tinham evidências indiretas.

Especialistas dizem que o novo estudo não encerra o caso: para o cérebro, lembrar é muito parecido com fazer (pelo menos em curto prazo, pois a pesquisa nada diz sobre memórias mais distantes).

O experimento, que será relatado na revista "Science", provavelmente abrirá novos caminhos na pesquisa da doença de Alzheimer e outras formas de demência, segundo alguns especialistas, assim como explicará como algumas memórias parecem surgir do nada. Os pesquisadores conseguiram até identificar memórias específicas nos sujeitos um ou dois segundos antes que eles as relatassem.

"Isto é o que eu chamaria de descoberta fundamental", disse Michael J. Kahana, professor de psicologia na Universidade da Pensilvânia, que não participou da pesquisa. "Não me lembro de qualquer estudo recente comparável. É realmente uma peça central no quebra-cabeça da memória e um passo importante para nos ajudar a preencher os detalhes do que exatamente acontece quando o cérebro realiza essa viagem no tempo mental" de recriar experiências passadas.

O novo estudo foi além da pesquisa existente sobre a memória, pois não se concentrou no reconhecimento da lembrança de símbolos específicos, e sim na memória livre - qualquer coisa que surgisse na cabeça das pessoas quando, neste caso, foram solicitadas a lembrar uma série de trechos de filmes que tinham acabado de ver.

Essa capacidade de reconstituir com riqueza a experiência passada costuma se deteriorar rapidamente nas pessoas com doença de Alzheimer e outras formas de demência, e é fundamental para a chamada memória episódica - o catálogo de vinhetas que, juntas, formam nossa lembrança do passado.

No estudo, uma equipe de pesquisadores americanos e israelenses colocou pequenos eletrodos no cérebro de 13 pessoas com epilepsia grave. Os implantes de eletrodos são um procedimento padrão nesses casos, pois permitem que os médicos identifiquem a localização das minitempestades de atividade cerebral que causam os ataques epilépticos.

Os pacientes assistiram a uma série de clipes de filmes de 5 a 10 segundos - alguns de programas populares da televisão como "Seinfeld" e outros mostrando animais ou marcos urbanos como a Torre Eiffel. Os pesquisadores gravaram a atividade de cerca de cem neurônios por pessoa; os neurônios registrados estavam concentrados no ou ao redor do hipocampo, um pequeno tecido nas profundezas do cérebro conhecido por ser crítico na formação das memórias.

Em cada pessoa os pesquisadores identificaram células isoladas que ficaram intensamente ativas durante alguns vídeos e permaneceram calmas em outros. Mais da metade das células registradas zumbiu de atividade em reação a pelo menos um trecho de filme; muitas delas também reagiam fracamente a outros.

Depois de distrair os pacientes por alguns minutos, os pesquisadores então lhes pediram para pensar nos clipes durante um minuto e relatar "o que vier à cabeça". Os pacientes lembraram de quase todos os clipes. E quando lembravam de um específico - por exemplo, o de Homer Simpson -, as mesmas células que tinham se ativado durante o trecho se reativavam. Na verdade, as células se ativavam durante um ou dois segundos antes que as pessoas tivessem consciência da memória, o que indicava para os pesquisadores que a memória viria.

"É surpreendente ver isso em um único teste; o fenômeno é forte, e estamos examinando o lugar certo", disse o autor principal, Itzhak Fried, professor de neurocirurgia na Universidade da Califórnia em Los Angeles e na Universidade de Tel Aviv.

"Esses pacientes estavam em uma ala ruidosa, havia muita coisa acontecendo ao redor deles, mas ainda se vê essa reação absolutamente robusta nos neurônios individuais", acrescentou Fried, cujos co-autores são Hagar Gelbard-Sagiv, Michal Harel e Rafael Malach, do Instituto de Ciência Weizmann em Israel, e Roy Mukamel, da UCLA.

Fried disse em uma entrevista por telefone que os neurônios isolados que agiam com mais força durante os filmes não agiam por conta própria; como todas essas células, faziam parte de um circuito que reagia aos filmes, incluindo milhares ou talvez milhões de outras células.

Em estudos com roedores, incluindo um trabalho que também será publicado em "Science", neurocientistas demonstraram que células especiais do hipocampo são sensíveis à localização, ativando-se quando o animal passa por certo ponto de um labirinto. O padrão de ativação dessas células forma a memória espacial dos animais e permite prever para que lado o animal vai virar, mesmo que ele faça um movimento errado.

Alguns cientistas afirmam que durante a evolução dos seres humanos essas mesmas células se adaptaram para registrar uma lista maior de elementos, incluindo possivelmente sons, odores, a hora do dia e a cronologia - quando uma experiência ocorria em relação às outras.

O registro de células isoladas não pode captar toda a série de circuitos envolvidos na memória, que podem se distribuir muito além da área do hipocampo, segundo especialistas. E com o passar do tempo as memórias se consolidam, submergem e talvez sejam totalmente reformuladas quando recuperadas mais tarde.

Embora o novo estudo não tenha abordado esse processo de longo prazo, ele sugere que pelo menos alguns neurônios que se ativam quando uma memória distante vem à mente são os que eram mais ativos quando ela aconteceu, não importa quanto tempo atrás.

"O mais animador é que agora temos evidência biológica direta do que antes era quase totalmente teórico", disse Kahana, da Universidade da Pensilvânia. 

mão de borracha