sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Penso Logo Desisto


A maior das ilusões não é a Matrix, um mundo de experiências virtuais que só acontecem em sua mente. Não, a maior ilusão é a sua própria mente, em particular a sua consciência e algo chamado livre-arbítrio. Esta ilusão o acompanha por toda sua vida, mesmo neste exato momento, ao ler estas linhas.
Depois de conhecê-la, não há mais volta. Você toma a pílula vermelha ao descobrir que a ciência vem desvendando esta ilusão há vários anos, mas a “Matrix” parece não querer que você conheça a verdade. E ela está ao alcance de qualquer um.
Clique na pílula vermelha e leia o restante de "Penso, logo desisto".

PONTO CEGO
Não nos lembramos de tudo que vemos. O que nem todos percebemos é que não vemos tudo que pensamos ver. A evidência mais simples disto é o ponto cego de nossos olhos, uma região da retina por onde o nervo ótico passa e que está assim desprovida de fotorreceptores. Esse pequeno ponto não capta imagens.
Se você nunca experimentou o ponto cego de seu próprio olho, feche o olho direito e fixe o olho esquerdo no círculo vermelho abaixo. Agora, aproxime-se lentamente do monitor, sem deixar de fixar o círculo vermelho.
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Quando estiver a em torno de um palmo de distância, a estrela azul deve sumir — é porque a imagem dela passou sobre o ponto cego. Se continuar se aproximando ou se afastar novamente, a estrela surge outra vez. O mesmo ocorre com a bola vermelha, se você fizer isso fechando o olho esquerdo e olhar para a estrela azul.
Perceba que quando o círculo ou a estrela somem, você não vê um ponto escuro em seu lugar. Ao invés, a área é substituída pelo branco à sua volta. Tente fazer a experiência com a imagem em negativo: quando a estrela ou o círculo sumirem, agora serão substituídos pelo negro ao redor.
blindspotneg.gif
Não porque seu ponto cego não capta luz, mas porque é esta a cor circundante.
Se o fundo fosse rosa-choque ou bordô, você veria a figura substituída por tais cores da mesma forma.
Isto ocorre pela mesma razão pela qual você geralmente não percebe seu próprio ponto cego: o cérebro continuamente preenche o buraco com informações ao redor e do outro olho. Você pensa que enxerga tudo em seu campo de visão, mas nem mesmo na própria retina isto é verdade.
ATENÇÃO
Tampouco é para o cérebro e sua memória visual. No ano passado, pesquisadores de Universidade de Pensilvânia estimaram que
a retina humana pode transmitir informação a uma velocidade quase igual à de redes de computador Ethernet, a 10Mb/s. Grosso modo, seriam 36Gb/hora,
aproximadamente 576Gb ao dia, e mais de 200 Terabytes ao ano. Um senhor de oitenta anos teria quase 17 PETAbytes transmitidos por sua retina. Isso é mais do que toda a capacidade de armazenamento do Google e seus mais de 450.000
servidores. Estaria tudo isso sendo armazenado em uma pequena parte do cérebro daquele velhinho sentado na esquina?
Experimentos científicos sugerem que não. Mesmo todas as informações captadas por nossa retina – fora do pequeno ponto cego – não são realmente capturadas por nossa memória e atenção.
Experiências de “cegueira de atenção” mostram que somos incapazes de perceber grandes mudanças em imagens. Não acredita? Confira este truque de baralho com cores que mudam.
Estas demonstrações não são apenas curiosidades evidenciando nossa desatenção. Eles questionam fundamentalmente nosso senso comum sobre a consciência e percepção como um fluxo contínuo e rico de estímulos. Ao invés, nosso cérebro constantemente filtra a sobrecarga gigantesca de informações que recebemos, principalmente de nossos olhos, e gera uma ilusão de consciência contínua sobre tudo que ocorre à nossa volta. Em realidade nossa percepção é estreita e fragmentada. E não é só.

PERNALONGA


Não apenas não vemos tudo que achamos que vemos, como mesmo aquilo que achamos que já vimos, nossa memória, funciona de forma diferente da que acreditamos. Isto é demonstrado de forma clara pela síndrome da falsa memória.
Em
mais um experimento, a psicóloga americana Elizabeth Loftus mostrou a vários sujeitos propagandas da Disneyworld, incluindo uma inocente apresentação do personagem Pernalonga cumprimentando algumas crianças no parque. Pouco tempo depois, a psicóloga fez uma pergunta sugestiva a eles. Será que eles se lembrariam, quando haviam ido à Disney, de ter encontrado o Pernalonga e “abraçado seu corpo felpudo e mexido em suas orelhas macias”?
Até um terço dos sujeitos disseram se lembrar de ter feito isso. Mas eles nunca o fizeram, porque você vê, o Pernalonga é um personagem da Warner que nunca esteve na Disneyworld — Warner e Disney são concorrentes, é o motivo pelo qual você nunca viu Mickey e Pernalonga no mesmo desenho. Até onde sabemos, ninguém jamais abraçou o coelho da Warner na Disney. A
propaganda mostrando a cena era uma montagem.
O que Loftus fez foi implantar uma falsa memória. Ela também o fez sugerindo a pessoas que haviam se perdido em um shopping quando crianças: a memória do acontecimento fictício passou a fazer parte das lembranças dos sujeitos, como
qualquer outra.
Lembra-se do “Vingador do Futuro”? Implantar falsas memórias na mente das pessoas não requer equipamentos da Rekal Inc., basta algumas sugestões certas.
Isto é especialmente verdade com a hipnose e pessoas sugestionáveis, mas o
surgimento de falsas memórias ocorre em maior ou menor grau em todos. Longe de ser um enorme arquivo de registros, nossa memória é maleável e facilmente manipulável.
Hora para uma fábula.

CONFABULAÇÃO



Era uma vez, em um reino distante, onde cientistas mostraram a voluntários alguns pares de fotografias de rostos de mulheres. “Qual lhes parece mais atraente?”, os cientistas perguntavam. Quando o voluntário revelava sua escolha, os cientistas pediam que ele descrevesse as razões para explicar sua escolha. “Essa é radiante!”. “Eu gosto de brincos!”, os voluntários explicavam.
Mas o que os voluntários não sabiam é que os cientistas eram muito serelepes, e algumas vezes usavam um truque para trocar as fotos. Detalhe importante: depois que a escolha já havia sido feita. Desta forma, pediam para que o voluntário explicasse por que
havia escolhido como mais atraente o rosto que, em verdade, não havia escolhido como o mais belo.
Curiosamente, apenas uma em cada cinco vezes a troca foi percebida. Como demonstramos há pouco, com o truque de cartas, esta seria a “cegueira da atenção”. Mas é aqui que a história fica ainda mais interessante, porque além de não perceber a troca,
parte dos voluntários foram capazes de descrever em detalhe por que haviam escolhido como mais atraente o rosto que em verdade não haviam escolhido!
Não apenas isso. As justificativas que os voluntários deram eram incrivelmente similares às justificativas dadas para os rostos que de fato haviam escolhido. Eles estavam em verdade confabulando, isto é, inventando e justificando uma escolha que não era sua. E o faziam muito bem.
Esta não é uma história da carochinha, claro. É mais um
experimento psicológico
, desta vez realizado há um par de anos por pesquisadores suecos e americanos. Seus resultados podem parecer inacreditáveis, mas não mais do que o último experimento em nossa coluna desta semana.
LIVRE ARBÍTRIO
No que deve ser o mais intrigante dos experimentos, em meados dos anos 1980 o pesquisador Benjamin Libet pediu que as pessoas fizessem algo como dobrar o pulso. Nada especial, ele também espalhou uma série de sensores para detectar a atividade cerebral bem como detectar quando o pulso foi dobrado.
Tentando descobrir mais a respeito de como o cérebro toma uma decisão – como mexer o pulso – ele também pediu que os sujeitos olhassem para um ponto girando rapidamente como um relógio. Quando eles sentissem a vontade, a decisão de apertar o botão, deveriam relatar aonde o ponto estava no relógio. Assim Libet teria uma idéia do momento em que a decisão foi tomada no cérebro.
Como esperado, a tomada de decisão ocorreu em torno de 200 milisegundos antes do movimento ser realizado de fato. Leva algum tempo para que ela chegue até nossos músculos. Porém, o resultado realmente intrigante esteve associado à atividade cerebral e algo chamado “potencial pré-motor”.
Já há algumas décadas se sabia que a ação voluntária como mexer um dedo é precedida por um padrão de onda cerebral característico, batizado de “potencial pré-motor”. Antes de realizar um movimento voluntário como mexer o pulso, seu cérebro produz esse padrão.
O que Libet descobriu foi que o potencial pré-motor antecede a decisão consciente relatada em até 350 milisegundos. Isto é, quase meio segundo antes de você “sentir” a vontade de apertar um botão, seu cérebro já esteve maquinando a idéia, produzindo um padrão que já indicava que você iria tomar essa decisão.
Neste caso, seu livre arbítrio, a sensação de decidir
mexer o pulso, naquele exato momento, seria apenas uma ilusão. Levaria mais tempo para essa atividade inconsciente chegar até a sua consciência como uma decisão “sua” do que a decisão leva para ser executada de fato pelos seus músculos. Sua consciência
seria algo como um marionete de processos cerebrais inconscientes.
As interpretações e conseqüências deste experimento ainda não foram completamente exploradas nem mesmo pela ciência. O próprio Libet evitou especular muito a respeito. A experiência é perturbadora mesmo sem abordar questões de determinismo, tantalizantes por si só.

A PÍLULA VERMELHA
Como a
psicóloga inglesa Susan Blackmore define em
um de seus trabalhos
, “uma ilusão não é algo que não existe, como um fantasma ou oflogisto. Ao invés, é algo que não é o que parece ser, como uma ilusão ótica ou uma miragem. Quando digo que a consciência é uma ilusão, não quero dizer que a consciência não existe. Quero dizer que a consciência não é o que parece ser”.
Suponha que o livre arbítrio seja realmente uma ilusão, que suas decisões são em verdade fruto de diversas atividades cerebrais inconscientes que só depois, retrospectivamente, são entendidas e rotuladas como sua, como o consciente, como
você.
Já vimos como somos bons em justificar decisões que não são nossas, no caso da troca de fotografias. Também vimos como mesmo memórias que não vivemos podem ser implantadas em nosso cérebro, no caso do Pernalonga na Disney.
Também descobrimos que não vemos tudo o que achamos que vemos, com a “cegueira de atenção”, e mesmo como o cérebro preenche vazios, como o ponto cego de nossa retina.
Este é o deserto concreto da realidade: nossa percepção até de nós mesmos é em grande parte uma ilusão. Não quer dizer que não existamos, ou mesmo que não tenhamos consciência ou livre-arbítrio. Mas a ciência seguramente evidencia que eles não são o que aparentam.
O que muitos devem se perguntar então é: se coisas tão básicas são ilusões, como conseguimos sobreviver na realidade? A resposta é que são justamente estas ilusões que nos permitem sobreviver no mundo, apesar das severas limitações de nossa biologia. Lembre-se de que nosso cérebro não armazena nem percebe tudo que vemos, mas ele funciona quase tão bem como se o fizesse.
Se víssemos o mundo invertido ou com um ponto cego como ele aparece em nossas retinas, se tivéssemos consciência constante de que nossas memórias são muito pouco confiáveis e de que podemos racionalizar decisões alheias como se fossem
nossas, provavelmente morreríamos em algumas horas na savana selvagem.
Mas se todas estas ilusões nos ajudaram a sobreviver, isso não significa que devamos nos confortar em simplesmente vivê-las. Assim como a “Matrix” pode sustentar pessoas em casulos fornecendo um mundo virtual enquanto drena suas energias, viver feliz na ignorância sem questionar ou querer saber mais sobre as ilusões que vivemos pode nos tornar tão inúteis quanto uma pilha Duracell descarregada.
Se você tomou a pílula vermelha, deve questionar o que percebe, o que ouve, assiste, o que lê. Mesmo o que pensa, ou o que acha que pensa. É o pensamento crítico, o questionamento racional, e é a ferramenta libertadora que está no cerne do que é a verdadeira Ciência. A verdadeira pílula vermelha que vem desvendando depois de milênios os mistérios da maior da ilusões: sua própria mente.