segunda-feira, 9 de março de 2009

O espetáculo do eu


A intimidade está à vista de todos: do Orkut aos reality shows, do You Tube aos fotologs, e é cada vez mais habitual que pessoas do mundo inteiro exponham sua vida privada por meio de fotografias, relatos e vídeos. Qual o sentido destas práticas contemporâneas?
por Paula Sibilia
OLHO DE JOVEM MULHER, 1844, ÓLEO SOBRE TELA DE JOSEPH SACCO/THE MANIL FOUNDATION, TEXAS

Ao longo da última década, a internet passou a hospedar um conjunto de práticas “confessionais”. Milhões de usuários do mundo inteiro se apropriam de diversas ferramentas disponíveis on-line e as utilizam para exibir sua intimidade. Dia após dia, com a velocidade do tempo real, tanto os detalhes mais saborosos como os mais inócuos de sua vida são expostos nas telas interconectadas da rede global de computadores. Assim, os assuntos mais íntimos de qualquer um se derramam em blogs e fotologs, por meio de webcams sempre ligadas ou em sites como YouTube, Orkut, MySpace, Twitter e Facebook.

Trata-se de um verdadeiro festival da vida privada: imagens e relatos que se oferecem sem pudor algum diante dos olhares sedentos de todos aqueles que desejarem dar “uma olhada”. A tendência é bem atual e, de fato, excede as margens da web para inundar todos os meios de comunicação. Basta pensar no sucesso dos reality shows e dos programas de TV que ventilam toda sorte de dramas pessoais, ou no sucesso de vendas das revistas de celebridades e mesmo das biografias, tanto no mercado editorial como no cinema.

Por que tudo isto, que parece tão fútil, é digno de atenção? O fato é que essa súbita insistência em exibir retalhos de intimidades próprias e alheias é inédita: nestas novas práticas, o espaço público e a esfera privada se misturam de uma forma jamais vista. Cabe lembrar que, até pouco tempo atrás, esses dois âmbitos da existência eram opostos e irreconciliáveis, considerados mutuamente excludentes. Mas agora vemos como as telas eletrônicas revelam, sem recato algum, todos os detalhes de qualquer vida. E não se trata apenas de um intenso desejo de se mostrar; há também cada vez mais pessoas dispostas a consumir avidamente esses relatos, fotografias e vídeos.


© FABRÍCIO MOTA/TV GLOBO
Participantes do Big Brother Brasil 9, exibido pela Rede Globo: campeão de audiência


No entanto, parece haver uma contradição neste fenômeno. Como é possível que os novos diários íntimos – pois é assim que são definidos habitualmente os blogs, por exemplo – se exponham diante dos milhões de olhos que têm acesso à internet? Seria essa exibição pública da intimidade um detalhe sem importância, que não altera a essência do velho diário íntimo em sua atualização cibernética? Ou se trata de algo radicalmente novo?

A rigor, todo esse murmúrio de confidências que emana dessas palavras e imagens parece ser mais “éxtimo” do que íntimo, para recorrer a um neologismo que procura dar conta da novidade. Porque embora existam muitas semelhanças entre os blogs atuais e os diários tradicionais – aqueles que proliferaram nos séculos XIX e XX –, também são enormes as diferenças entre os dois gêneros autobiográficos. Aqueles caderninhos rascunhados no silêncio e na solidão dos ambientes privados de antigamente, muitas vezes sob a luz das velas e envolvidos no mais respeitável dos segredos, tinham uma missão: resguardar todas as dobras daquela sensibilidade típica da modernidade industrial. Eram ferramentas que serviam para que esses sujeitos históricos tentassem se compreender: ajudavam-nos a criar seu próprio eu no papel. Já os blogs, os fotologs e as webcams de hoje, bem como certos usos do YouTube, do Orkut ou do Facebook respondem a outros estímulos e têm metas bastante diversas. Expressam características subjetivas bem atuais e servem a propósitos igualmente contemporâneos. Mas quais seriam essas peculiaridades e esses objetivos específicos? Trata-se de uma pergunta que vale a pena formular, porque a busca de respostas também pode nos orientar rumo à compreensão dos sentidos desses novos hábitos.

PARA SER ALGUÉM
Os antigos diários íntimos eram, para seus autores, cartas remetidas a si próprios. Eram textos extremamente privados, introspectivos e secretos, pois permitiam mergulhar na própria interioridade. Possibilitavam um afundamento em toda a riqueza e na misteriosa densidade da vida interior de cada um, a fim de decifrar tudo aquilo que se hospedava em suas recônditas profundezas. Já os novos diários éxtimos da internet são verdadeiras cartas abertas. Por isso, parece evidente que tanto seus propósitos como seus sentidos são outros. A própria definição muda, pois em vez de apontar para “dentro” de cada um, os novos meios de expressão e comunicação se voltam para “fora”, buscando conquistar a visibilidade e a celebridade.



O grande irmão, de Orwell: exemplo de vigilância constante


Centrando o foco da análise nessa pequena grande diferença, cabe deduzir que nos exercícios cotidianos de autoconstrução via web se desenvolvem subjetividades afinadas com uma cultura bem diferente daquela que imperava nos séculos XIX e XX. Em mais de um sentido, estamos nos afastando daqueles tempos modernos de outrora, que já estão ficando envelhecidos. Pois agora, contrariamente ao que acontecia naquelas épocas já longínquas, novas forças incitam a fazer do próprio eu um show.

Como resultado dessas convulsões, a nossa idéia de intimidade também está mudando. Esse termo costumava aludir àqueles âmbitos da existência que se conheciam, de maneira inequívoca, como “privados”. Uma definição que, até bem pouco tempo, parecia tão óbvia e sem fissuras. No entanto, é cada vez mais evidente que alguma coisa mudou, e que são inúmeras as repercussões dessa transformação. Essas mudanças não são fruto exclusivo dos avanços tecnológicos que hoje nos permitem realizar façanhas antes impensáveis, mas resultam também – e, talvez, sobretudo – de certas redefinições no que tange aos nossos valores e crenças, além de contemplar múltiplos fatores de ordem sociocultural, política e econômica.

Em virtude de todos esses abalos, cujos efeitos foram se consolidando por toda parte nos últimos anos, em vez de se apresentar como o reino do segredo e do pudor, hoje o espaço íntimo se converte numa espécie de cenário onde cada um deve montar o espetáculo de sua própria personalidade. Junto com essas redefinições, alargam-se compulsivamente os limites do que se pode dizer e mostrar. Seja com receio ou com prazer, mas quase sempre com certo espanto, hoje vemos como a velha esfera da privacidade se exacerba sob a luz de uma visibilidade que se deseja total.

Entre outros motivos, isso se dá porque essa visibilidade promete nos conceder a tão prezada celebridade. E, por si mesmas, essas condições parecem capazes de legitimar a existência daqueles que conseguem conquistá-las: ser visto e ser famoso equivale, cada vez mais, a ser alguém. Mesmo que não exista motivo algum para estar à vista de todos, e embora essa celebridade não tenha nenhum sentido exterior a ela própria. Assim, em virtude dessas transmutações, em anos recentes, a espetacularização da vida privada mais banal tem se tornado habitual – e desejável. E, como diria Guy Debord – autor do “profético” manifesto A sociedade do espetáculo, publicado há mais de quatro décadas -–, segundo esta nova lógica, o espetáculo se torna tautológico. Se algo aparece nos meios de comunicação é porque é bom. Mas por que é bom? Porque aparece nas telas midiáticas. E vice-versa, e só isso.

Pois já não é mais necessário ter feito algo extraordinário para ter acesso ao cobiçado pódio da fama, nem sequer dispor de alguma qualidade peculiar ou algum conhecimento valioso. Hoje, praticamente todos temos à nossa disposição um arsenal de técnicas para estilizar a personalidade e as experiências vitais. Além de aplicar esses recursos cotidianamente, para aprimorar a própria imagem, é preciso projetar de forma adequada os resultados dessa auto-estetização, a fim de nos posicionarmos do melhor modo possível no competitivo mercado das aparências e atrair os olhares alheios. As receitas mais eficazes para obter sucesso nessa espetacularização de si provêm dos moldes narrativos e estéticos que aprendemos ao longo das últimas décadas, tanto no cinema como assistindo televisão e consumindo publicidade, e que agora se recriam e desdobram nos novos gêneros interativos da web.

A noção de intimidade não é a única que se esvanece nesse turbilhão de mudanças. Perdem nitidez, também, as fronteiras que costumavam dividir aqueles dois tipos de espaços onde transcorria a existência moderna: a esfera pública e o âmbito privado. As paredes que os separavam, e que eram sólidas e opacas, desempenhavam papel fundamental na elaboração do eu moderno. Nesse processo cotidiano de autoconstrução, os diários íntimos podiam servir como uma útil ferramenta. Agora, porém, quando esses muros apresentam frestas que deixam infiltrar os olhares alheios, esse tipo de instrumento perdeu a sua utilidade. Porque hoje são outros os modelos subjetivos que se criam e se expõem incansavelmente nos monitores interconectados pelas redes globais; e, portanto, deverão ser outras as ferramentas adequadas para atingi-los.

Por isso aumentou tanto a quantidade de pessoas que recorrem à internet para experimentar, ensaiar e brincar, testando novas formas de ser alguém – e se relacionar. Nos jogos que se desenvolvem nesses reluzentes cenários virtuais surgem estilos cada vez mais distantes do paradigma moderno do “homem sentimental”, por exemplo. Ou seja, aquele sujeito tipicamente oitocentista, que cultivava seus segredos íntimos para construir seu eu em torno de um eixo situado “dentro” de si mesmo, uma essência afincada na própria interioridade, nesse âmago cuja obscura solidez era capaz de defini-lo por inteiro.

Em contraste com essas vertentes mais antigas, os novos gêneros autobiográficos anunciam outros modos de ser. Formas subjetivas que resultam mais adequadas ao mundo contemporâneo, um ambiente que já não é mais aquele universo da modernidade industrial. Em lugar daquela subjetividade interiorizada, que se engendrava no silêncio e na solidão dos velhos ambientes privados, agora se desenvolvem formas de ser mais “exteriorizadas” e compatíveis com nosso meio.

Tudo ocorre como se estivesse se deslocando, paulatinamente, o eixo em torno do qual cada sujeito elabora seu eu. Nascem, assim, entre nós, subjetividades bem menos concentradas na “vida interior” e mais voltadas para o campo do visível. Esses novos sujeitos, tão contemporâneos, crêem que devem ser capazes de mostrar o que eles são na própria pele e na luz das telas.

SUJEITOS HISTÓRICOS
Não se trata de meras futilidades sem importância, pois tais habilidades são cada vez mais imprescindíveis para poder lidar adequadamente com os demais e para obter sucesso nos diversos mercados da atualidade. Esses novos “modos de ser” que hoje se configuram, assim treinados no dia-a-dia das telas e dos teclados, são mais úteis e produtivos na hora de saciar as demandas da nossa sociedade.

Não é fácil adivinhar para onde apontam estas tendências, pois se trata de uma transição que está em pleno andamento. Um fenômeno cujo desenvolvimento é extremamente veloz, e seu caminho não só está repleto de metamorfoses constantes, mas também de contradições e surpresas. Embora ainda persistam várias características daqueles modelos tipicamente modernos, são muitos os indícios que sugerem esse deslocamento do núcleo em torno do qual as subjetividades se constroem. Um deslocamento nos próprios eixos do eu. Assim, cada vez mais, a verdade sobre cada um de nós abandona aquele núcleo secreto e íntimo – onde se refugiavam as subjetividades interiorizadas dos séculos XIX e XX .

Por isso, em vez daquele olhar introspectivo dos velhos diários íntimos e todo o universo da cultura letrada em geral, agora se estimula o espetáculo do eu. E, para responder com eficácia a essas demandas é necessário colocar em ação uma série de habilidades vinculadas com as linguagens midiáticas. Em vez de nos buscarmos apontando para “dentro”, agora somos intimados a ir para “fora”.

Graças aos recursos oferecidos pela web e outros meios de comunicação que se tornam cada vez mais audiovisuais e interativos, as novas construções pessoais podem ser exibidas nas telas globais. E é desse modo que este novo tipo de eu se realiza. Porque em nossa sociedade do espetáculo só é aquilo que se vê, e por isso é necessário aparecer para que os olhares alheios confirmem a própria existência. Trata-se daquilo que se espera de nós: é o nosso modo de ser contemporâneo.



CONCEITOS-CHAVE
- Os antigos diários íntimos eram cartas remetidas pelos autores a si próprios; Já os blogs são verdadeiras “cartas abertas”.

- O deslocamento dos eixos do eu faz com que o núcleo secreto e íntimo onde se refugiavam as subjetividades passe a priorizar a exibição de si e do outro.

- Atualmente, a esfera da privacidade se torna extremamente visível, como se a visibilidade garantisse a tão prezada celebridade, legitimando existências. Ser visto e ser famoso equivale, cada vez mais, a ser alguém.


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O silêncio dos Astros

Quando analisados por métodos científicos, horóscopos e mapas astrais parecem fórmulas genéricas, aplicáveis a qualquer pessoa. A longevidade e a popularidade da astrologia se devem a mecanismos psicológicos que a tornam atraente e verossímil para um grande número de pessoas por Edgar Wunder
REZA ESTAKHRIAN/STONE/GETTY IMAGES



Será que os astros realmente influenciam nossa personalidade e nosso destino? Muitas pessoas acreditam que sim. Outras tantas não estão muitas preocupadas com a veracidade das previsões astrológicas, mas tampouco ficam indiferentes ao próprio mapa astral ou deixam de checar o horóscopo nos jornais, na internet. Uma pesquisa feita na Alemanha, em 2001, mostrou que três em cada quatro pessoas fazem isso esporadicamente, e uma em cada três, diariamente.

O horóscopo tradicional se baseia numa lógica bastante simples: as pessoas pertencem a um dos doze signos do zodíaco, de acordo com sua data de nascimento. Devido a um erro amplamente difundido, acredita-se que cada signo está associado a uma constelação celeste. Especialistas, no entanto, rejeitam essa idéia; os signos apenas correspondem a períodos determinados do calendário, numa divisão geométrica do céu em 12 setores, totalmente independentes das constelações do firmamento, cuja coincidência de nomes é resultado de acontecimentos históricos, totalmente superados.

Muitos astrólogos, de fato, não dão tanta importância a essa divisão do zodíaco em 12 signos, cada qual supostamente ligado a um tipo de personalidade. A maioria prefere trabalhar com mapas astrais e horóscopos individualizados, calculados com base no local e na hora exatos em que a pessoa nasceu. Mesmo assim, para o público leigo, o lado mais atraente da astrologia é essa tipologia comportamental, segundo a qual os escorpianos são vingativos os capricornianos ressentidos e os librianos, indecisos, por exemplo. Para os psicólogos que se dedicam ao assunto, as previsões astrológicas parecem dar sentido à vida de muitas pessoas, causando a espantosa impressão de que são verossímeis.


© AKIRA FUJII
CONSTELAÇÃO DE SAGITÁRIO: coincidências entre terminologia astrológica e astronômica têm raízes históricas, hoje completamente superadas



O papel de cientistas, como eu, não é rejeitar essas idéias, mas avaliá-las criticamente, levando em conta, até mesmo, que elas possam ser verdadeiras. Foi assim que o psicólogo alemão Martin Reuter, da Universidade de Bonn, e seus colegas dinamarqueses Peter Hartmann e Helmuth Nyborg, da Universidade de Arhus,investigaram, em 2005, a relação entre signo zodiacal e personalidade em cerca de 15 mil pessoas. Seus resultados mostraram, tal como outros estudos anteriores, que não havia correlação comprada entre as duas variáveis.

Mas por que, então, a astrologia é tão popular? Há 20 anos, a psicóloga alemã Hannelore Seelmann-Holzmann já dizia, em sua tese de doutorado na Universidade de Erlangen-Nuremberg, que a “lógica dos astros” funciona, para muitas pessoas, como um sistema de subsignificação do racionalismo. Segundo ela, não se trata de ignorar a contradição em relação aos sistemas de significação que regem as ciências naturais; ao contrário: as convicções astrológicas são complementares à visão racional do mundo.

Por não representar uma doutrina dogmática associada a nenhuma instituição (ligadas a religiões, por exemplo), cada pessoa pode adaptar o conhecimento astrológico conforme suas próprias experiências individuais e visão de mundo.

© VLADM/SHUTTERSTOCK
O PSICÓLOGO AUSTRALIANO Geoffrey Dean descreve mecanismos psíquicos que podem aparecer em estudo de mapas astrais

Eu mesmo descobri, numa pesquisa que realizei, em 2002, com 135 astrólogos alemães, que apenas 18% desses profissionais realmente acreditavam na influência dos astros no destino humano. Para minha surpresa, alguns me disseram abertamente que a astrologia funcionaria como uma “ficção útil”. Segundo o astrólogo alemão Christopher Weidner, a ciência contemporânea não permite mais que esses profissionais usem velhas desculpas, como a de que os astros indicam tendências, e não fatos específicos.

Como indicam alguns estudos, aqueles que recorrem a uma aproximação mais elaborada ou “amadurecida” com a astrologia podem ir bem além da simples crença e fazer com que a influência dos astros seja percebida mais como uma experiência subjetiva de coerência. Alguns psicólogos costumam chamá-la de experiência de evidência, relacionando-a ao horóscopo pessoal ou à caracterização de personalidade. Já as previsões muito específicas são vistas com mais reservas. Nada impede, porém, que com base em padrões de comportamento se trace – independentemente dos astros – algumas hipóteses para o futuro. Uma característica fundamental das experiências de evidência é que elas variam na forma como são percebidas e vividas pela pessoa. Enquanto para algumas elas são comuns ou até rotineiras, para outras podem ser raras e intensas.

Como nós, pesquisadores, explicamos as experiências de evidência? Primeiramente, elas não são expressão de credulidade ou de imaginação. No início dos anos 90, o psicólogo australiano Harvey Irwin, da Universidade de Nova Gales do Sul, em Armidale, publicou uma série de estudos que demonstrou que os simpatizantes da astrologia são tão inteligentes, críticos e psicologicamente saudáveis como qualquer outra pessoa. Entretanto, revelaram-se um pouco mais criativos que a média.
BIBLIOTECA BRITÂNICA, LONDRES


Além disso, pela forma como os horóscopos são redigidos, qualquer um que os leia com relativa imparcialidade pode perceber uma coincidência entre a previsão e algum aspecto da própria vida. Como comprovei em uma pesquisa feita com 1.700 voluntários, publicada em 2002 quase todos que rejeitaram a astrologia tinham em comum o fato de nunca terem se dedicado a estudar o assunto. Em compensação, entre os que se aprofundaram um pouco no tema, praticamente todos já tinham passado por experiências de evidência.
Em um artigo de 1998, o psicólogo australiano Geoffrey Dean descreve pelo menos três dúzias de mecanismos psíquicos cuja efetividade foi comprovada em estudos com horóscopos e mapas astrais. O mais freqüente e o mais discutido é o efeito Barnum. O nome é uma referência ao ator circense americano Phineas T. Barnum (1810-1891) que acreditava que o segredo do sucesso é “agradar todo mundo, pelo menos um pouco”.

EFEITO BARNUM
O psicólogo americano Bertram R. Forer estudou o efeito Barnum pela primeira vez em 1948. Ele pediu a seus alunos que avaliassem o quão preciso era um texto astrológico que descrevia sua personalidade – o qual, em vez de ser uma análise feita por um profissional, apresentava uma compilação de informações coletadas em horóscopos de jornal. Os alunos atribuíram uma pontuação a esse “relatórios”, seguindo uma escala de 0 (nada preciso) a 5 (extremamente preciso). Espantosamente, a média ficou em 4,2. Mais tarde, Forer e outros pesquisadores repetiram o experimento e chegaram praticamente ao mesmo resultado. Afirmações vagas, genéricas ou ambíguas foram as que tiveram pontuações mais altas.

Depois de Forer, outros cientistas também demonstraram que quanto mais as pessoas acreditam em astrologia, mais elas tendem a concordar com afirmações do tipo Barnum. O psicólogo austríaco Andreas Hergovich concluiu, com base em muitos experimentos, que esse efeito pode ser associado a praticamente qualquer característica ou acontecimento, sendo capaz até de harmonizar informações contraditórias. Assim, qualquer previsão astrológica pode soar absolutamente pertinente.

Outro mecanismo capaz de gerar experiências de evidência é a chamada pseudo-individualização. Em 1973, o psicólogo americano Rick Snyder, da Universidade do Kansas, em Lawrence, deu a três grupos de voluntários textos astrológicos idênticos, que supostamente descreviam a personalidade de cada um. Ao primeiro grupo ele explicou previamente que se tratava de uma descrição genérica da personalidade, que poderia se aplicar a qualquer pessoa. Ao segundo grupo, disse que o texto se baseava em uma interpretação astrológica de seu ano e mês de nascimento. Aos participantes do terceiro grupo, contou que aquele seria um mapa astral feito individualmente a partir da hora e do dia exato de nascimento de cada voluntário. Apesar de todos terem recebido o mesmo material, as interpretações variaram enormemente. Segundo a avaliação média do grupo 1, o conteúdo não cabia avaliação segundo critérios de certo ou errado, uma vez que se tratava de um texto genérico. Para o grupo 2, as informações estavam relativamente corretas. Já o grupo 3 considerou praticamente tudo absolutamente certo. Isso significa que quanto mais (pseudo)individualizada é a apresentação da previsão astrológica, maior é a identificação do receptor.

Um terceiro fenômeno que faz com que os horóscopos e mapas astrais pareçam convincentes é conhecido como erro de atribuição, isto é, a tendência de buscar motivos para um certo comportamento em características instáveis de uma pessoa. Isso mostra que, em determinadas situações, todo indivíduo se comporta de forma emotiva, teimosa ou egocêntrica se for do signo de peixes, touro ou câncer, respectivamente. Então se um taurino se mostrar insistente, quem acredita em astrologia costuma justificar tal atitude pelo signo ascendente dele – sem considerar, porém, se o pisciano ou o canceriano teriam agido da mesma forma nas mesmas circunstâncias.

Além disso, toda vez que somos expostos a uma afirmação, a tendência natural imediata é concordar com ela. A maioria das pessoas raramente se esforça para refutar uma tese. Quando isso ocorre junto com o erro de atribuição, surge, quase obrigatoriamente, uma experiência de evidência. Assim, se tivermos em mãos uma interpretação astrológica da personalidade, o mais fácil é encontrar comportamentos aplicáveis – e, de fato, acreditamos encontrá-los, ainda que nos esqueçamos de verificar se pessoas de outros signos teriam se comportado da mesma forma em situação similar. Assim, muitas vezes, quando sabemos que um colega é aquariano, por exemplo, buscamos nele as características típicas desse signo, como o idealismo e o amor pela liberdade, em vez de traços típicos de capricórnio, como a preocupação com a opinião alheia e o senso de responsabilidade (algo que provavelmente seria possível encontrar). A isso se soma a tendência de perceber nossas expectativas e convicções de forma seletiva. Assim, quem crê na astrologia está mais propenso a registrar com maior freqüência declarações falsas como verdadeiras.

Em 1997, fui conselheiro científico do programa Quark&Co, da emissora de televisão alemã WDR. Em um dos episódios, realizamos um experimento com 200 pessoas, recrutadas por meio de anúncios de jornal, para um projeto de “pesquisa astrológica”. Todos os participantes receberam exatamente o mesmo mapa astral, com a informação de que ele teria sido elaborado sob medida para cada um. Os resultados mostraram que três quartos dos indivíduos se sentiram bem descritos. O que ninguém sabia é que o mapa astral havia sido elaborado com as informações de nascimento de Friedrich Haarmann, um criminoso que nascera em 1879! Teste semelhante já havia sido feito nos anos 50 pelo psicólogo e estatístico francês Michel Gauquelin, que usara informações de um serial killer.

ALTA PROBABILIDADE
A probabilidade de que certas afirmações estejam corretas é outro fator subestimado pelos simpatizantes das previsões astrológicas. Lembro-me de quando participei, no início dos anos 90, de um evento em que uma astróloga me disse que “sentia” em meu mapa astral (desconhecido por ela) “um Mercúrio especialmente acentuado”. Então, perguntei como isso se expressaria em meu mapa e ela disse que o sol, o ascendente ou a lua poderiam estar em gêmeos ou virgem, ambos regidos por esse planeta. Ou o próprio Mercúrio estaria nesses signos, no ascendente ou no centro do céu, ou criaria ainda um aspecto importante junto com outro planeta. Provavelmente a astróloga não sabia que a probabilidade de ocorrência de alguma dessas configurações é maior que 80%. O número dos elementos interpretativos é tão grande que, no fim das contas, é possível encontrar qualquer traço de personalidade em praticamente todo mapa astral.

Mas será que realmente toda experiên-cia de evidência pode ser totalmente atribuída a mecanismos psicológicos? Para checar essa hipótese, pesquisadores compararam sistematicamente mapas astrais com datas de nascimento corretas e incorretas. Se ambos levassem ao fenômeno na mesma intensidade e freqüência, então sua ocorrência não teria relação alguma com a data de nascimento e a posição dos astros. Foi exatamente esse o resultado de inúmeros estudos, entre eles, um de 2003, para o qual convidei 26 astrólogos e 1.700 voluntários. Os profissionais não conseguiram descobrir qual, entre duas datas de nascimento, era a correta para uma determinada pessoa, apesar de terem perguntando anteriormente tudo o que queriam aos participantes, exceto o dia em que nasceram. Inversamente, os indivíduos também não conseguiram definir qual das duas interpretações astrológicas oferecidas fora feita especificamente para eles.

Resultados como esses foram confirmados por outras investigações, algumas delas concebidas e executadas por astrólogos. O australiano Geoffrey Dean, por exemplo, ficou tão desiludido que abandonou a atividade, e desde então já analisou mais de 50 pesquisas semelhantes. Sua conclusão: o índice de acerto de seus ex-colegas não é maior que o de um gerador aleatório de respostas.

Contudo, nada disso impede que muitos astrólogos, em busca de credibilidade, tentem se associar à ciência, invariavelmente sem sucesso. Muitos citam como referência o suíço Carl Gustav Jung, criador da psicologia analítica, que teria dito: “A astrologia moderna se aproxima mais e mais da psicologia e já se pode ouvi-la batendo nos portões das universidades!”.

CONCEITO-CHAVE Diversos estudos mostram que não há qualquer associação estatística entre personalidade e o perfil astrológico atribuído a cada um dos 12 signos do zodíaco. O mesmo se aplica aos mapas astrais e horóscopos individualizados.

Diferente das doutrinas religiosas, a lógica astrológica é perfeitamente adaptável por cada indivíduo, moldando-se a suas outras crenças, muitas vezes harmonizando informações contraditórias e tornando a visão racional do mundo mais aceitável.

Psicólogos já identificaram uma série de mecanismos psíquicos pelos quais as previsões e interpretações astrológicas parecem verdadeiras e confiáveis para muitas pessoas. Alguns exemplos são o efeito Barnum, a pseudo-individualização e o erro de atribuição. Todos eles contribuem para que a astrologia seja vista por muitos
como algo verossímil.

A REFORMA DE GAUQUELIN
DIVULGAÇÃO

O psicólogo e estatístico francês Michel Gauquelin (1928-1991) é uma referência obrigatória para todos os interessados na validade científica da astrologia. Seu primeiro livro, A influência dos astros, de 1951, faz uma revisão crítica das pesquisas estatísticas nessa área, sugerindo que a configuração do céu no momento de nascimento não era aleatória.

Seus primeiros estudos indicaram posições estatisticamente significativas de alguns planetas em certas áreas: Marte, para atletas; Júpiter, para atores; e Saturno, para cientistas. No entanto, trabalhos posteriores, feitos com maior rigor metodológico, mostraram que essas e outras associações eram bastante duvidosas. Em As bases científicas da astrologia, de 1970, afirma: “É certo que os signos do céu, que assistiram ao nosso nascimento, não têm poder algum de decidir nosso destino, de afetar nossas características hereditárias, ou de tomar parte, ainda que mínina, nos eventos que definem nossa vida”.

Nos últimos anos de vida, Gauquelin propôs uma reforma na astrologia, sugerindo que ela deveria abandonar seus dogmas e suas tradições, adotando um novo modelo que fosse estatisticamente preciso e comprovável, detalhado em seu último livro Neoastrologia, de 1991. Não obstante, muitos astrólogos ainda o citam como se ele tivesse encontrado evidências a favor da astrologia tradicional.

DEUSES, DEMÔNIOS, PLANETAS E ARQUÉTIPOS
MARK GRAVES/SHUTTERSTOCK



Por que haveria uma relação entre a posição dos planetas e a personalidade ou o destino das pessoas? Não parece haver consenso nem mesmo entre os astrólogos. Deuses ou demônios expressariam assim seus desejos, como consta nos documentos mais antigos. Com o afastamento entre astronomia e astrologia, as explicações baseadas nas órbitas dos planetas foram ficando cada vez mais insustentáveis. Hoje se fala menos em influência dos astros, e mais em analogias simbólicas – como se houvesse uma coincidência entre o que ocorre aqui na Terra e lá no firmamento. Também se comenta muito sobre arquétipos, numa clara referência à psicologia junguiana.

Em 2002, uma pesquisa com 135 astrólogos alemães avaliou quais eram suas experiências de evidência com mapas astrais e horóscopos. As respostas abaixo incluem várias explicações:

43% Analogias simbólicas
18% Influência dos astros
12% Mecanismos psicológicos
11% Símbolos arquetípicos
10% Clarividência
3% Acaso
2% Influência de deuses e demônios

PARA CONHECER MAIS The scientific basis of astrology. Michel Gauquelin. Stein and Day Publishers, 1969.

Interação entre extroversão e conhecimento astrológico em estudantes brasileiros. Anna Mathilde Pacheco, Chaves Nagelschmidt e Paulo Roberto Grangeiro Rodrigues. Psicologia – Teoria e Pesquisa, vol. 23, no 3, págs. 305-312, 2007.

O mundo da astrologia – Estudo antropológico. Luís Rodolfo Vilhena. Jorge Zahar, 1990.

Efeito Barnum a ilusão do ser. François Filiatrault. Mente&Cérebro, no 115, págs. 80-81. Dezembro de 2005.