domingo, 7 de setembro de 2008
Prefácio do livro: A ÁRVORE DO CONHECIMENTO
O ponto de partida desta obra é surpreendentemente simples: a vida é um processo de conhecimento; assim, se o objetivo é compreendê-la, é necessário entender como os seres vivos conhecem o mundo. Eis o que Humberto Maturana e Francisco Varela chamam de biologia da cognição. O modo como se dá o conhecimento é um dos assuntos que há séculos instiga a curiosidade humana. Desde o Renascimento, o conhecimento em suas diversas formas tem sido visto como a representação fiel de uma realidade independente do conhecedor. Ou seja, as produções artísticas e os saberes não eram considerados construções da mente humana. Com alguns intervalos de contestação (como aconteceu logo no início do século 20, por exemplo), a idéia de que o mundo é pré-dado em relação à experiência humana é hoje predominante – e isso talvez mais por motivos filosóficos, políticos e econômicos do que propriamente por causa de descobertas científicas de laboratório.
Segundo essa teoria, nosso cérebro recebe passivamente informações vindas já prontas de fora. Num dos modelos teóricos mais conhecidos, o conhecimento é apresentado como o resultado do processamento (computação) de tais informações. Em conseqüência, quando se investiga o modo como ele ocorre (isto é, quando se faz ciência cognitiva), a objetividade é privilegiada e a subjetividade é descartada como algo que poderia comprometer a exatidão científica. Tal modo de pensar se chama representacionismo, e constitui o marco epistemológico prevalente na atualidade em nossa cultura. Sua proposta central é a de que o conhecimento é um fenômeno baseado em representações mentais que fazemos do mundo. A mente seria, então, um espelho da natureza. O mundo conteria "informações" e nossa tarefa seria extrai-las dele por meio da cognição. Como aconteceu com muitas outras, essa posição teórica também produziu conseqüências práticas e éticas. Veio, por exemplo, reforçar a crença de que o mundo é um objeto a ser explorado pelo homem em busca de benefícios. Essa convicção constitui a base da mentalidade extrativista – e com muita freqüência predatória – dominante entre nós. A idéia de extrair recursos de um mundo-coisa, descartando em massa os subprodutos do processo, estendeu-se às pessoas, que assim passaram a ser utilizadas e, quando se revelam "inúteis", são também descartadas. Como todos sabem, a exclusão social alcança hoje em muitos países proporções espantosas, em especial no continente africano e na América Latina. Ao nos convencer de que cada um de nós é separado do mundo (e, em conseqüência, das outras pessoas), a visão representacionista em muitos casos terminou desencadeando graves distorções de comportamento, tanto em relação ao ambiente quanto no que diz respeito à alteridade.
O representacionismo é um dos fundamentos da cultura patriarcal sob a qual vive hoje boa parte do mundo, inclusive as Américas. A esse respeito, lembremos um dado histórico comentado por Hannah Arendt1 em relação aos bôeres, europeus em sua maioria descendentes de holandeses que iniciaram a colonização da África do Sul no século 17. O contato com os nativos sempre os chocava, diz Arendt. Para aqueles homens brancos, o que tornava os negros diferentes não era propriamente a cor da pele, mas o fato de que eles se comportavam como se fizessem parte da natureza.
Não haviam, como os europeus, criado um âmbito humano separado do mundo natural. Do ponto de vista dos bôeres, essa ligação tão íntima com o ambiente transformava os nativos em seres estranhos. Era como se eles não pertencessem à espécie humana. Por serem parte da natureza, eram vistos como mais um "recurso" a ser explorado. Por isso, era "justo" que fossem amplamente utilizados como produtores de energia mecânica no trabalho escravo, ou então simplesmente massacrados. Eis um exemplo do tipo de alteridade gerado pelo modelo mental fragmentador. A fragmentação traduz a separação sujeito-objeto, principal característica da concepção representacionista. Hoje, mais do que nunca, o representacionismo pretende que continuemos convencidos de que somos separados do mundo e que ele existe independentemente de nossa experiência. Foi exatamente para mostrar que as coisas não são tão esquemáticas assim que surgiu A Árvore do Conhecimento. Eis a sua tese central: vivemos no mundo e por isso fazemos parte dele; vivemos com os outros seres vivos, e portanto compartilhamos com eles o processo vital. Construímos o mundo em que vivemos durante as nossas vidas. Por sua vez, ele também nos constrói ao longo dessa viagem comum. Assim, se vivemos e nos comportamos de um modo que torna insatisfatória a nossa qualidade de vida, a responsabilidade cabe a nós. Ao contrário das tentativas anteriores de contestar pura e simplesmente o representacionismo, as idéias de Maturana e Varela têm nuanças que lhes proporcionam uma leveza e uma perspicácia que constituem a essência de sua originalidade. Para eles, o mundo não é anterior à nossa experiência. Nossa trajetória de vida nos faz construir nosso conhecimento do mundo – mas este também constrói seu próprio conhecimento a nosso respeito. Mesmo que de imediato não o percebamos, somos sempre influenciados e modificados pelo que vemos e sentimos. Quando damos um passeio pela praia, por exemplo, ao fim do trajeto estaremos diferentes do que estávamos antes. Por sua vez, a praia também nos percebe. Estará diferente depois da nossa passagem: terá registrado nossas pegadas na areia – ou terá de lidar também com o lixo com o qual porventura a tenhamos poluído. Do mesmo modo, as águas de um rio vão abrindo o seu trajeto por entre os acidentes e as irregularidades do terreno. Mas estes também ajudam a moldar o itinerário, pois nem a correnteza nem a geografia das margens determinam isoladamente o curso fluvial: ele se estrutura de um modo interativo, o que nos revela como as coisas se determinam e se constróem umas às outras. Por serem assim, a cada momento elas nos surpreendem, revelando-nos que aquilo que pensávamos ser repetição sempre foi diferença, e o que julgávamos ser monotonia nunca deixou de ser criatividade. Tomemos ainda outra metáfora: não são só os timoneiros que dirigem os navios.
O meio ambiente também pilota as embarcações, por meio das correntes marítimas, dos ventos, dos acidentes de percurso, das tempestades e assim por diante. Dessa forma os pilotos guiam, mas também são guiados. Não há velejador experiente que não saiba disso. Portanto, pode-se dizer que construímos o mundo e, ao mesmo tempo, somos construídos por ele. Como em todo esse processo entram sempre as outras pessoas e os demais seres vivos, tal construção é necessariamente compartilhada. Para mentes condicionadas como as nossas não é nada fácil aceitar esse ponto de vista, porque ele nos obriga a sair do conforto e da passividade de receber informações vindas de um mundo já pronto e acabado – tal como um produto recém saído de uma linha de montagem industrial e oferecido ao consumo. Pelo contrário, a idéia de que o mundo é construído por nós, num processo incessante e interativo, é um convite à participação ativa nessa construção. Mais ainda, é um convite à assunção das responsabilidades que ela implica. Não se trata, porém, de uma escolha retórica, e sim do cumprimento de determinações que derivam da nossa própria condição de viventes. Maturana e Varela mostram que a idéia de que o mundo não é pré-dado, e que o construímos ao longo de nossa interação com ele, não é apenas teórica: apóia-se em evidências concretas. Várias delas estão expostas – com a freqüente utilização de exemplos e relatos de experimentos – nas páginas deste livro.
Em suma: se a vida é um processo de conhecimento, os seres vivos constroem esse conhecimento não a partir de uma atitude passiva e sim pela interação. Aprendem vivendo e vivem aprendendo. Essa posição, como já vimos, é estranha a
quase tudo o que nos chega por meio da educação formal.
As teorias de Maturana e Varela constituem uma concepção original e desafiadora, cujas conseqüências éticas agora começam a ser percebidas com crescente nitidez. Nos últimos anos, por exemplo, tal compreensão vem se ampliando de modo significativo e tem influenciado muitas áreas do pensamento e atividade humanos. A Árvore do Conhecimento tornou-se um clássico, ou melhor, recebeu o justo reconhecimento de seu classicismo inato. Por isso, é importante contar aqui as linhas gerais de sua história.
Tudo começou na década de 1960, quando Maturana, professor da Universidade do Chile, intuiu que a abordagem convencional da biologia – que basicamente estuda os seres vivos a partir de seus processos internos – podia ser fertilizada por outro modo de ver. Tal abordagem os concebe em termos de suas interações Um pouco de História com o ambiente, no qual, é claro, estão os demais seres vivos. Em meados dos anos 60, Varela tornou-se aluno de Maturana. A seguir, já também professor, continuou a trabalhar com ele na Universidade do Chile. Juntos escreveram um primeiro livro: De Máquinas y Seres Vivos: Uma Teoría de la Organización Biológica Tempos depois, a instauração do regime militar no país, a partir de 1973, fez com que os dois autores fossem para o exterior, onde continuaram a trabalhar separadamente.
Em 1980, de volta ao Chile, retomaram a colaboração. Por essa época, a organização dos Estados Americanos (OEA) buscava novas formas de abordar a comunicação entre as pessoas e o modo como ocorre o conhecimento. Por intermédio de Rolf Behncke, também chileno e ligado a essa instituição, Maturana e Varela começaram a expor os resultados de suas pesquisas em uma série de palestras, assistidas por pessoas de formação heterogênea. A transcrição e edição dessas apresentações resultou num livro, publicado em 1985 em edição não-comercial para a OEA. Essa obra constitui, com algumas modificações, o que é hoje A Árvore do Conhecimento. Desde a sua primeira edição destinada ao público – em 1987 –, ela jamais deixou de despertar atenção, gerando comentários, resenhas, análises, pesquisas, outros livros. Tudo isso compõe hoje uma ampla bibliografia, espalhada por áreas tão diversas como a biologia, a administração de empresas, a filosofia, as ciências sociais, a educação, as neurociências e a imunologia.
O centro da argumentação de Maturana e Varela é constituído por duas vertentes. A primeira, como vimos, sustenta que o conhecimento não se limita ao processamento de informações oriundas de um mundo anterior à experiência do observador, o qual se apropria dele para fragmentá-lo e explorá-lo. A segunda grande linha afirma que os seres vivos são autônomos, isto é, autoprodutores – capazes de produzir seus próprios componentes ao interagir com o meio: vivem no conhecimento e conhecem no viver. A autonomia dos seres vivos é uma alternativa à posição representacionista. Por serem autônomos, eles não podem se limitar a receber passivamente informações e comandos vindos de fora. Não "funcionam" unicamente segundo instruções externas. Conclui-se, então, que se os considerarmos isoladamente eles são autônomos. Mas se os virmos em seu relacionamento com o meio, torna-se claro que dependem de recursos externos para viver. Desse modo, autonomia e dependência deixam de ser opostos inconciliáveis: uma complementa a outra. Uma constrói a outra e por ela é construída, numa dinâmica circular.
Mas o que fazer para que o ser humano se veja também como parte do mundo natural? Para tanto, é preciso que ele observe a si mesmo enquanto observa o mundo. Esse passo é fundamental, pois permite compreender que entre o observador e o observado (entre o ser humano e o mundo) não há hierarquia nem separação, mas sim cooperatividade na circularidade. Na verdade, Maturana e Varela dão – não apenas com este livro, mas com o conjunto de suas respectivas obras – uma contribuição relevante à compreensão daquilo que talvez seja o maior problema epistemológico de nossa cultura: a extrema dificuldade que temos de lidar com tudo aquilo que é subjetivo e qualitativo. Mas temos outra limitação. Para nós, não é fácil aceitar que o subjetivo e o qualitativo não se propõem a ser superiores ao objetivo e ao quantitativo; e que não pretendem descartá-los e substitui-los, mas sim manter com eles uma relação complementar. Não entendemos que todas essas instâncias são necessárias, e que é essencial que entre elas haja um relacionamento transacional, uma circularidade produtiva. Tal situação tem produzido, como foi dito, conseqüências éticas importantes. Parece incrível, mas muitas pessoas (inclusive cientistas e filósofos) imaginam que o trabalho científico deve afastar de suas preocupações a subjetividade e a dimensão qualitativa – como se a ciência não fosse um trabalho feito por seres humanos. Maturana e Varela mostram, com abundância de exemplos e constatações, que a subjetividade (tanto quanto a objetividade), e a qualidade (tanto quanto a quantidade), são na verdade indispensáveis ao conhecimento e, portanto, à ciência. Hoje, os dois autores seguem caminhos diferentes. No entanto, a diversidade de suas linhas de trabalho atuais não elimina um traço básico do ideário original: o que sustenta que os seres vivos e o mundo estão interligados, de modo que não podem ser compreendidos em separado.
Outro ponto de convergência é o que diz que, se o conhecimento não é passivo – e sim construído pelo ser vivo em suas interações com o mundo –, a postura de só levar em conta o que é observado deixa de ter sentido. A transacionalidade entre o observador e aquilo que ele observa, além de mostrar que um não é separado do outro, torna indispensável a consideração da subjetividade do primeiro, isto é, a compreensão de como ele experiência o que observa. Maturana permanece no Chile, de onde sai periodicamente para cursos, conferências e seminários em vários países do mundo, inclusive o Brasil. Aprofunda seu pensamento sobre a biologia do conhecimento e a respeito de sua concepção de alteridade, que chama de biologia do amor. A transacionalidade da biologia do conhecimento com a biologia do amor compõe a base do que ele denomina de Matriz Biológica da Existência Humana.
Varela trabalha em Paris, onde desenvolve duas linhas complementares de pesquisa. A primeira consta de estudos experimentais sobre a integração neuronal durante os processos cognitivos. A outra consiste em investigações sobre a consciência humana Tais pesquisas proporcionam contribuições à sua escola de estudos cognitivos – a ciência cognitiva enativa (teoria da atuação). Em linhas gerais, essa teoria sustenta que é preciso levar em conta não apenas a objetividade, mas também a subjetividade do observador, que havia sido preterida pelos modelos teóricos representacionistas de ciência cognitiva. Ou seja, pretende lançar uma ponte sobre o fosso que separa a ciência (o universo da objetividade) da experiência humana (o domínio da subjetividade).
Há anos que a Associação Palas Athena, por meio de sua Editora, pretende lançar uma tradução d'A Árvore do Conhecimento. Esse desejo sempre traduziu a certeza não apenas da importância da obra, mas também da afinidade entre as idéias dos cientistas chilenos e os princípios da Associação. Eis por que agora a concretização do projeto é para todos nós um acontecimento da maior importância, que queremos compartilhar.
Humberto Mariotti
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