Psicólogo explora origens cognitivas da música analisando as habilidades das pessoas comuns
France Presse |
Casal chinês canta em karaokê; livro defende que domínio básico de afinação é inato e caiu em desuso na cultura moderna
RAFAEL GARCIA
DA REPORTAGEM LOCAL
Qualquer pessoa que já tenha ido a um bar de karaokê estranharia se alguém lhe dissesse que a aptidão para a música é um dom universal. Diante de tantas notas desafinadas -que tendem a piorar com o consumo de álcool- é difícil acreditar que a musicalidade tenha sido moldada pela evolução e se tornado um diferencial de sobrevivência para a espécie humana. Essa, contudo, é a hipótese que tem sido perseguida por um número cada vez maior de cientistas da mente, que têm na música um objeto de estudo.
Segundo o psicólogo cognitivo Daniel Levitin, professor da Universidade Stanford, da Califórnia, há pelo menos 250 pesquisadores que hoje trabalham nisso mundo afora. Seu dia-a-dia varia entre atividades que vão desde escanear o cérebro de violinistas em máquinas de ressonância magnética até convencer pessoas desafinadas a cantar para medir sua precisão média de afinação.
Um número sem fim de ideias já foi concebido para investigar questões relacionadas à origem evolutiva da música, mas diversas teses que emanam dos experimentos parecem esbarrar em um obstáculo comum. Se todas as sociedades evoluíram o suficiente para incluir a música em seu repertório de comportamento, por que só alguns indivíduos privilegiados conseguem subir em um palco e cantar ou tocar algo que agrade ao resto dos mortais?
"A música no seu cérebro", novo livro de Levitin, que sai agora em português, tenta responder a essa pergunta, com relativo sucesso. O cientista, que também é músico formado pelo Berklee College, de Boston, não é o primeiro a levar esse o universo da neurocognição musical a um livro para leigos, mas conseguiu a primazia em pelo menos um aspecto.
Outros autores que já trataram do assunto, como Oliver Sacks e Robert Jourdain, abordam a questão quase exclusivamente sob a óptica dos formalismos da música erudita. O ambiente de um concerto, postulam os cientistas, precisa ser de alguma forma comparável à cultura musical nas cavernas do Paleolítico. Isso exige uma estratégia de didatismo não necessariamente simples.
Salto de coragem
Contornar essa dificuldade, porém, parece ter demandado mais coragem do que estratégia, afinal. Levitin explica: "Ficaríamos chocados se membros do público num concerto sinfônico se levantassem da cadeira e começassem a bater palmas, gritar, dançar como se espera que aconteça num show de James Brown, mas tal reação é certamente mais próxima da nossa verdadeira natureza."
O autor cumpre com habilidade a missão de aproximar a música popular da neurocognição. Seu currículo inclui uma década de trabalho como produtor musical na Califórnia, tendo acompanhado sessões de gravação de artistas como Carlos Santana e Aretha Franklin.
O resultado é um livro acessível ao frequentador típico de karaokê, que pode amar música, mas não talvez não queira ter de escutar um concerto de Schönberg para entender explicações sobre como a harmonia musical atua no cérebro. Levitin, por opção, recorre continuamente a canções dos Beatles como exemplos e não dispensa nem "Parabéns a você".
O livro também narra uma pesquisa realizada pelo próprio Levitin, na qual mostrou que todas os humanos possuem em algum grau o chamado ouvido absoluto -habilidade que algumas pessoas têm de dar nomes a todas as notas que escutam.
Recrutando estudantes para experimentos em Stanford, ele constatou que muitos não-músicos, quando deixados à vontade, tendem a cantarolar suas canções preferidas no tom original correto. Para Levitin, o ouvido absoluto é apenas uma espécie de habilidade inconsciente, mas universal. Por alguma razão desconhecida, só algumas pessoas conseguiriam trazê-la ao plano consciente.
Se a ideia de que há algo de Mozart em cada um de nós é sedutora e aparece bem fundamentada no livro, o tratamento dado à questão evolutiva da música não passa a mesma impressão. Levitin é assumido adepto da teoria segundo a qual a música surgiu na espécie humana em função da seleção sexual, mesmo reconhecendo ser esta uma ideia ainda carente de evidências mais contundentes.
"Darwin considerava que a música antecedia a fala como ferramenta para fazer a corte, equiparando à cauda do pavão", escreve o autor, recorrendo a exemplos como o sucesso reprodutivo de Jimi Hendrix para corroborar a teoria.
Se a psicologia cognitiva não obteve grandes avanços na tentativa de explicar a emergência da música na evolução humana, porém, trabalhos como o de Levitin são uma sugestão forte de que vale continuar nessa busca, na contramão do que acredita um dos papas da área. "A música poderia desaparecer da nossa espécie, e nosso estilo de vida ficaria praticamente inalterado", escreveu psicólogo americano Steven Pinker.
Levitin, porém, defende que dificilmente um mero efeito colateral de habilidades cognitivas seria tão prevalente em tantas sociedades e, por fim, em tantos indivíduos. Se muita gente hoje sente vergonha de cantar, afinal, o fato de que todos sabem apreciar alguém que canta talvez diga alguma coisa.
LIVRO - "A música no seu cérebro"
de Daniel Levitin
Civ. Brasileira, 364 págs., R$ 49,90
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